27 de dez. de 2017

Partidas

Podem dizer muita coisa certa, confortar com muita explicação lógica, confortar espiritualmente nossos corações em pedacinhos...
Mas eles foram cedo demais.
Poderiam até ter chegado até aos 200 anos, e ainda assim, teriam ido cedo demais...
Só não foram cedo demais por causa da dor. Boas pessoas não deviam sofrer. Pessoas assim tão amadas, não podiam ter que lutar sozinhas essas lutas em que todos os outros (nós) nos tornamos tão impotentes.
Não podia não. Devia ser proibido.
Eles foram cedo demais, ainda que tivessem vivido pra sempre. Ainda teria sido cedo demais.
E então, na revolta dessa partida injusta, pensando na natureza que é sábia e transforma, pensando no amor que é a força mais poderosa do universo, dá para saber que a injustiça não cabe em lugar nenhum, então tudo isso simplesmente "não encaixa".
Estamos vendo errado.
Não existiu essa partida, essa despedida, essa separação. Não existiu porque não combina com o que sabemos dentro de nós, com nossas mais absolutas certezas.
Ninguém sabe mais do que os sentimentos que sentimos.
Ficaram invisíveis. Nossos heróis ficaram invisíveis... Só mais um super-poder, entre tantos outros.
Deste super poder não precisamos nem podemos gostar... mas foi isso...
Só mais um super poder.
Que lhes permite estar em todos os lugares, ver o que não conseguimos ver (exatamente como acontecia quando éramos pequenos), saber o que ainda não sabemos.
O amor é a força mais poderosa do mundo... e no amor, eles agora só ficaram invencíveis, como sempre foram aos nossos olhos. Agora, também contra qualquer dor ou doença.

19 de dez. de 2017

Despedida

A realidade é um pouco diferente agora. Caixas, empacotamentos, lembranças embaladas, memórias carregadas. Pedacinhos à serem transportados de uma vida inteira, que se espalha e multiplica pelas pessoas de valor e mérito. Muitas participam, muitas recolhem-se a observar. Levo lições importantes de uma semana repleta de aprendizados, conclusões e sentimentos. Tantos anos sem mudar para depois aprender a arte da mudança, para poder estar aqui agora e fazer o que estou fazendo. Com o coração repleto destes aprendizados recentes, conclusões e sentimentos, sinto-me grata pela chance dessa despedida prolongada  e silenciosa, desse esvaziar de um etapa que tinha começado assim mesmo, com um apartamento vazio, eu e você. O apartamento vai ficando vazio e já não está você, que espalhou-se pelo mundo, encantando, inspirando e voando por esse Universo que desconheço ainda. Fico eu, para fechar a porta e dar por encerrada essa etapa, enquanto corro para o abraço dos que ficaram, enchendo-nos nós, uns aos outros, do amor que você nos deixou.

15 de dez. de 2017

Receita para uma vida feliz

O que faz uma vida feliz? Sorrisos, amor, afetos, amizades, saúde, família, amigos, valores, princípios. Tanta coisa, tanta coisa boa!

Felicidade é ao ensinarmos, ao abraçarmos, ao transmitirmos afeto e exemplos, sabermos do que falamos, do que mostramos, do que aplicamos em nossas vidas.

Pensar que ao ensinarmos um filho, realmente aplicamos em nós este saber. Sentir, no mais fundo do nosso ser, que falamos o que praticamos, e mais do que nossas palavras, estamos deixando nosso exemplo, nossa verdade mais íntima aplicada e praticada.

Ter perdido a presença física do meu pai me fez perceber e valorizar ainda mais as verdades sempre ditas, os fatos sempre claros, os exemplos de pessoa e de valores.

Então, quando vejo e percebo tantas coisas à minha volta, é do meu coração a voz que me diz com clareza, sensatez e equilíbrio mais ensinamentos ainda...

Quando forem falar do valor e da importância da família, pensem se a palavra que vocês dão é cumprida. Se as promessas são honradas. Ou não falem nada. Um exemplo falso é muito pior do que exemplo algum.

Quando forem ensinar ou dizer que a mentira é errada, pensem se não há mentira dentro de vocês.

Quando forem falar de uma pessoa, seja mal ou seja bem, pensem se essa pessoa gostaria de ouvir o nome dela saindo de vocês. A hipocrisia é sempre muito mal vista.

Quando forem festejar, ou jantar fora, ou passear, ou comprar um livro, um brinquedo, um café, se as suas dívidas estão todas pagas, se moralmente se tem realmente aquilo se gasta. Uma falsa moral é ainda pior que moral alguma, um exemplo falso é muito pior que exemplo nenhum.

Quando forem falar de amor, pensem se sabem honrar este sentimento. Ou não digam nada.

Quando forem falar em saudade, pensem se souberam usar os instantes que tiveram.

A receita para uma vida simples é fácil. Mas há que se ter dentro de si mesmo a verdade para saber usufruir da felicidade. Ou é apenas ilusão, apenas mais um exemplo falso, que é sempre muito pior que exemplo nenhum. A felicidade verdadeira é leve, é livre, não julga e não carrega culpas. Liberta.

24 de nov. de 2017

Papai - por Ana Luiza (Agapito) Baumann

A perda foi grande e, apesar de ser já há muito tempo anunciada, ainda é dificil de acreditar que aconteceu.

Meu pai foi uma pessoa impar. Nosso relacionamento foi intenso, tanto pra um lado quanto pra outro, até encontrarmos a harmonia, um compreendimento do outro, a admiração, o respeito e aceitação de que só um grande amor é capaz.

Tenho tantas lembranças. A infância tão feliz mas também a adolescência tumultuada, a maturidade que alcancei na marra, ou na marretada mesmo...tantas lições, tantos erros e acertos, encontros e desencontros...mas que como ele mesmo me disse em uma de nossas ultimas conversas 'nada há do que se arrepender, o que vivemos nos tornou o que somos e acho que valeu a pena'.

Ele viveu da maneira que acreditava ser a melhor pra ele, passou por altos e baixos, mas sempre foi consequente com a própria consciência. Não se deixou corromper por relacionamentos falsos, fosse por aparência, conveniência ou interesse. Foi autêntico e como espirito livre que era, escolheu a maneira que queria deixar esse mundo. E foi.

E eu admiro ele ainda mais por isso.

Vai deixar muita saudade mas, o que devia ser um buraco, está surpreendentemente preenchido por lembranças, demonstrações de amor, coisas de uma vida inteira e que eu venho dia a dia redescobrindo, relembrando, acariciando.

Não vou guardar mágoas nem rancor de ninguém, quero com isso ajudar e de alguma forma proteger essa partida. Quero que seja leve, desprendida, plena. Que ele possa se amalgamar com o maior amor em dimensões que eu ainda não compreendo, mas que pressinto um dia tambem vou poder mergulhar.

Tudo isso me faz lembrar de um dos primeiros livros mais filosóficos que eu e minhas irmãs lemos, ainda meninas, não sei mais se dado por meu pai ou minha mãe; Ilusões, de Richard Bach, o autor de Fernando Capelo Gaivota...outro livro que marcou nossa infância e carater.

Para terminar essa despedida uma frase desse livro que escrevi em muitas agendas e páginas de caderno, e que já na época de escola me tocava profundamente. Gosto de imaginar que meu pai teria me murmurado ela com um sorriso se eu estivesse ao lado dele no momento da transição: "o que a lagarta chama de fim do mundo, o mestre chama de borboleta".

Vai com Deus pai. Boa viagem. Da sua filha Ni.
  24.11.2017

18 de nov. de 2017

Pai

Me sentei aqui no chão, entre a casa e a montanha de pedras, com minhas costas voltadas para o sol e meus olhos para o campo. Me lembrei das vezes que você ia sem camisa se sentar no terraço para apanhar sol, a sua "praia" particular, e que você dizia que isso fazia bem - apanhar sol nas costas.

Na verdade, não sei o que mais eu posso fazer agora para além de estar assim, calma, apanhando este sol nas costas. Estou mesmo muito calma, serena, aliviada pela poupança de dor e em paz de espírito e consciência, grata por tantas coisas boas e momentos, por uma partilha inexprimível.

Mas estou também com o coração apertado, sentindo uma tristeza saudosa que eu sei, vai ficar sempre. Às vezes vai apertar mais ou vai apertar menos, mas fica.

Engraçado como ao mesmo tempo, me vejo agradecendo por todas as novas tecnologias que me permitem lembrar momentos e conversas através de fotos, áudios, emails. Tantos e tão bons! Quem dera fossem ainda mais, apesar de serem inúmeros.

Os passarinhos cantam, os cachorros brincam, um vento muito fraco faz algumas folhas e galhos balançarem e existe mesmo muita serenidade e paz, existem lembranças muito boas e fortes dos abraços, dos risos e das conversas.

Poucas horas atrás eu estava a dizer sobre como sou afortunada. Mesmo agora... com essa tristezinha no peito, que bênção e que fortuna é este conforto que carrego de tantas coisas para lembrar e sentimentos para sentir.

Mesmo longe, a união entre todos nós, o amor tão imenso e incondicional que nos faz estar nos abraços uns dos outros mesmo quando estão invisíveis os braços.

Queria poder chorar no seu colo e no seu abraço, e eu sei que você queria também. Aí sinto bem forte que na verdade (essa verdade que é invisível mas concreta), eu choro sim no seu abraço, e você sim, me conforta.

Estamos todos juntos. Sempre.

11 de out. de 2017

Verdades

A ilusão é pensar que basta uma verdade superficial para ser "diferente". Poucos são aqueles capazes de partilhar as verdades incômodas.

E uma coisa é facto: Verdades "bonitinhas", superficiais e hipócritas interessam-me nada.

"Sonho com um amor em que duas pessoas compartilham uma paixão de buscar juntas uma verdade mais elevada. Talvez não devesse chamá-lo de amor. Talvez seu nome ideal seja amizade." - (Friedrich Nietzsche)

29 de set. de 2017

Não me ames

Não me ames, que enquanto não houver amor há de haver verdade. Enquanto não me amares, poderás ver a mim ao invés de teres os olhos fechados por tuas necessidades e desejos.
Não me ames, não estragues com ilusões a verdade que a razão trás. Não me queiras, não me desejes e nem precises de mim. Enquanto formos nós mesmos, poderemos ser tudo e assim nos complementarmos.Não queiras me amar com intensidade, com urgência e sem medida, que isso são necessidades de um coração vazio e não amor de verdade.Não me queiras como um mar revolto em sua vida, que isso só significa naufrágio. Não deixes que os buracos abertos, que as feridas que ainda sangram te façam me amar, que isso é tapar buracos com areia que qualquer vento leva.Prefiro que não me ames nunca, não me queiras nunca, não precises de mim nunca, assim sempre serás tu e não um pedaço de ser humano carente de mim. E gosto e respeito te demais para te querer sendo qualquer outra coisa que não tu mesmo.Não te deixes levar pela vontade de sentir as pernas trêmulas e pelas noites sem conseguir fechar os olhos, não, não me ames nunca.É por não me amares que com mais ternura me amas.Há muito mais verdade no teu não amar do que em qualquer frase de amor que me pudesses dizer.Enquanto não me amares, não me vou assustar, não vou temer nem fugir. Enquanto souberes quem és e quem eu sou, as coisas estarão em seus devidos lugares sem que existam coisas não nossas pelo meio.Enquanto não me amares, sei que é com a tua essência e com a tua verdade que me amas, e então não há necessidade de mais nada, só do que aquilo que de fato já há.É por não te amar que te amo com maior verdade e ternura.

25 de set. de 2017

Teoria das espécies do Amor

Um texto irônico, pretensioso, arrogante e não claramente infundado.

Faz alguns anos cheguei à conclusão de que o amor é uma escolha. Pode parecer estranho, mas através do meu ponto de vista sempre há um ponto, às vezes bem no princípio de tudo, onde há mesmo nitidamente uma escolha sobre o que um dia pode se tornar amor.

Pode ser bastante sutil, quase imperceptível, mas está lá em algum lugar o instante em que escolhemos ou não avançar, em que escolhemos ou não pensar, escolhemos ou não dedicar tempo (e espaço) para alguém em nossas vidas; “Foi o tempo que dedicaste à tua rosa que a fez ser tão especial para ti” – já escreveu Exupery.

E não há como negar nossa natureza humana, uma mistura de tantas coisas e entre tantas, um bocado de curiosidade, de apreço ao risco, de ego, apego e etc. e tal e... voilá! Escolha feita (consciente ou não).

Claro que às vezes pode dar certo, e que acontece de que podem entrar outras motivações (mais nobres) à mistura do que é a natureza humana, pois também faz parte de nós o afeto, o carinho, a compreensão e mais etc. e tal.

Seja por gostar demasiado de analisar e criar teorias, seja por uma base biológica de formação ou por um acaso qualquer, vejo diversas coisas (traços de caráter, comportamentos, raciocínios e principalmente sentimentos) como espécies. Espécies como as espécies do reino animal ou vegetal, pertencentes à uma classe, reino, (espécie) e família. Há desde as que podemos considerar mais “nobres” ou “evoluídas” até aquelas que menos parecem ter importância ou “evoluído menos”. E pronto, aí chega uma teoria conspiratória “biológica”: - Quem é “melhor”, as espécies mais “novas” que sofreram processos evolutivos ao longo do tempo para que se adaptassem melhor ao meio que as cerca ou por exemplo, o crocodilo, que evoluiu “pouco” por já estar consideravelmente “bem-adaptado” e sem tanta necessidade de evolução? Pode aí entrar uma outra pergunta (várias na verdade, mas vou por partes): Se é o meio que nos cerca que determina a necessidade ou não da evolução, um meio contaminado é capaz de gerar uma evolução que seja positiva não em termos de adaptação, mas em termos de humanidade e princípios?

Se em termos mais gerais a evolução mais classificada e analisada é a física, metabólica, anatômica e genética, em termos mais “espirituais” como se classificaria a evolução e qual a significância da adaptação ao meio para o processo evolutivo – ou, justamente nesse aspecto, a evolução seria o crescimento independente da necessidade de adaptação ao meio e sim a evolução “para além” da necessidade de adaptação?


O curioso da formulação destas perguntas é a possibilidade de respostas, e ainda, o facto (ridículo, se poderia dizer) de que estas perguntas capazes de criar uma tese e aprofundar ainda mais teorias (carentes de corroboração) deu-se pela constatação de que seria (para mim, neste instante) muito mais fácil lidar com uma ausência total e sem vestígios de uma determinada “espécie” do que com os registros de existência da mesma. Resumindo ainda mais e concluindo: A evolução dá trabalho e a preguiça faz parte da natureza humana.

Nota: Mas antes, no princípio do texto, eu falava em escolhas... que o amor, por exemplo, seria uma escolha. Se existem diversas formas de amor e sendo o amor uma escolha, resta saber no processo evolutivo qual a espécie que melhor se adapta ao "ser" de cada um, ou mais diretamente, às motivações de cada um - e da natureza de cada um. Quanto à minha natureza, ainda estou a tentar perceber a relevância da preguiça, que consideraria "mais fácil" lidar com a ausência absoluta do ser e de vestígios do ser do que com a possibilidade da necessidade de um esforço evolutivo (ou adaptativo).

30 de jul. de 2017

Eu não queria

Eu não queria dizer-te adeus.
Não queria deixar passar-me ao lado toda a estrada que não percorremos, todas as viagens que não fizemos, toda a vida que não vivemos.
Eu não queria dizer-te adeus, nem afastar os meus olhos e meus risos dos teus.
Não queria deixar vir o tempo em que passarás a ser uma vaga lembrança, algo remoto dentro de mim que nem vou lembrar-me muito bem.
Não queria que chegasse o instante em que vais ligar e vou ter que perder alguns instantes até recordar-me de quem és, para então decidir se vale ou não a pena atender-te. Não queria...
Não queria deixar passar-me ao lado as noites estreladas em meio a lugar nenhum que não tivemos, o barulho das ondas do mar a quebrarem em nossos ouvidos entorpecidos pelos sons de nós mesmos que não chegamos a escutar.
Não queria deixar de viver o que ainda não vivemos.
Não queria deixar o calor e a exaustão dos dias tomarem maior força que a vontade do encontro de nós mesmos.
Não queria deixar-te ir, não queria dizer-te adeus.
Não queria que as obrigações e o tempo que marca o relógio se tornassem maior do que os sonhos que não chegamos a sonhar.
E quando nos afastamos, quando deixamos de nos falar, entender e compreender, eu não queria não conseguir dizer que não te queria dizer adeus.
Porque sei que em algum lugar estás e estarás sempre, e os dias me irão levar para diante e para o esquecimento, e a lembrança de tudo que poderia ter sido deixará de ser, pois nunca terá sido nada.
Eu não queria.
Mas não sabes.
Não sabes evitar o que eu não queria...
Nem eu.

30 Julho, 2010 - Ilusões

30 de Julho de 2010, Ilusões:
Eu queria me agarrar em ilusões, com toda a força que posso concentrar nas minhas mãos. Queria usar cada centímetro dos meus músculos para agarrar ilusões de tal forma que nunca pudessem se transformar ou partir.
Queria escolher a minha realidade, desenhá-la à minha maneira com as cores que eu escolhesse, sem temer que um dia o desenho torne-se borrado ou nebuloso.
Pois existe muito mais encanto e fascínio no mundo que nossa mente pode produzir do que existe muitas vezes naquilo que de fato está a nossa volta. É muito mais fácil viver de sonhos, de ilusões e das expectativas que nosso coração pode criar do que naquilo que nossos olhos muitas vezes não querem enxergar.
Fomos criados assim, em meio a contos de fadas, a histórias de finais felizes e príncipes encantados. Somos como eternas crianças tentando abandonar a primeira infância, temendo pelas coisas que vemos ruir a nossa volta, à percepção de que nossos pais não são súper heróis e de que não somos capazes de voar.
Em algum momento foi implantada em nós a vontade de voar, de ter asas e de alcansar o céu. Uma parte de nós, por mais que o tempo passe e que creçamos, ainda acredita nessa capacidade. Precisa acreditar, senão o mundo torna-se cinzendo, duro, feito de concreto e asfalto.
Nem tudo aquilo que se quer é possível de ser conquistado, nem todos os sonhos são realizáveis, e nada tem a ver com a nossa força, coragem ou capacidade. Está muito mais relacionado com a realidade dos fatos.
Pessoas que gostamos ou amamos (ou pessoas que gostaríamos de gostar e amar) não são perfeitas, não possuem o dom de transformar as nossas vidas e nos devolver a capacidade de acreditarmos nas coisas que gostaríamos. Somos nós, sempre nós mesmos, os únicos capazes de transformar qualquer coisa em nós ou em nossa vida. Mas continuamos a teimar em encontrar alguem capaz de fazer isso por nós, ou alguém que nos sirva como alavanca para as transformações que precisamos em nós.
Quando caem essas projeções, crenças, nos vemos sozinhos novamente, e iniciamos novamente a procura por outra alternativa. Um ciclo constante de procura, desejos, ilusões e decepções. Ninguém é capaz de nos decepcionar, são apenas as nossas idéias e projeções que caem por terra. E como nos livrarmos dessas projeções, desses desejos, desses sonhos, se esta é a natureza do nosso ser?
Nenhum amigo, pai, mãe, ou seja quem for é capaz de nos desiludir, de nos decepcionar. É a idéia que fazemos daquela pessoa que se desfaz, que se desmancha em frente aos nossos olhos como pequenos castelos feitos na areia quando vem a água do mar.
Por isso é tão importante a compaixão, a compreenção, o perdão e a aceitação. Somos todos feitos da mesma matéria de desejos e sonhos. Somos todos frágeis, lutando nossas próprias batalhas, ora perdendo, ora conquistando.
Ver a fragilidade, fraqueza e defeitos de outra pessoa pode nos fazer escolher desencantarmo-nos com ela ou sermos tomados por uma imensa onda de compaixão e respeito, pois é através de outra pessoa que podemos ver a nós mesmos. Essa é a verdadeira essência do perdão e do amor.
Não importa quais sejam as fraquezas ou defeitos, não importam quão feios nos pareçam, pois somos feitos todos da mesma matéria. Uma massa de argila que cada um, ao longo da vida, procura moldar da melhor maneira possível, somos todos nós os escultores de nosso próprio ser, e podemos a todo instante escolher a forma com que vamos nos moldar.
Nesse percurso, cada um faz a melhor escultura possível, aquela que lhe parece a mais delicada e bonita ou aquela que parece a mais resistente e impactante, é a arte de viver.
Agape - Desassossego

24 de jul. de 2017

Será que aceito?

Enquanto espero, tomo um gelado na esplanada e fico a observar as pessoas em contínuo movimento, algumas a sair da praia (a maioria) e outras a trabalhar. Escuto indistintamente as conversas à minha volta e reparo nas expressões em seus rostos.
Não pertenço à nada disto, é um facto. Quanto tempo mais levarei para aceitar isso, não sei.
Não pertenço à este ritmo, à estes valores, à estes interesses e cotentamentos.
Pela primeira vez, tomo real consciência do quanto estou distante disto tudo. Do quanto sempre fui distante disto tudo.
Não que eu não tenha tentado encontrar uma forma de "entrar" ou de "fazer parte", e foi talvez sempre este o meu erro - tentar ser como não sou.
Ainda não sei, claro, se o facto de tomar consciência disto faz-me pronta para aceitar o facto como é, não sei se ao tomar consciência, automaticamente aceito minha verdade.
Mas que faz-me mais leve, isso faz.

17 de jul. de 2017

A velha

Era uma velha, muito, muito velha.

Tinha os sonhos todos enrugados, tinha as motivações flácidas e os desejos sem qualquer força de movimento ou vitalidade, tinha a pele em casca, e o coração em pedra. De tão velha, quase que deixava de ser presença para ser apenas uma sombra.

Movia-se entre os dias com a teimosia dos velhos, embora tivesse a sabedoria dos velhos endurecida e também envelhecida.

Olhava à sua volta com olhar observador, única parte em si que ainda emitia algum brilho, ainda que longínquo.

Vivia com gosto porém sem vontade, e quando apareceu um menino nos dias dela, foi sem relutância que o deixou aparecer, como era sem relutância que passava de um para outro dia.

Pouco a pouco começou a surpreender-se com o menino, como ele conseguia dia após dia parecer ainda mais menino e mais criança, mesmo sendo de certa forma, mais velho que ela. Olhava-se as vezes no fim do dia ao espelho, e passava cada vez mais tempo a observar os sonhos enrugados, as motivações flácidas e sem vida, os desejos enrijecidos.

Os dias corriam, e cada vez mais a velha passava mais tempo a observar-se ao espelho, ganhando estranheza cada vez maior ao olhar suas marcas de velhice.

Quando num momento inesperado o menino pegou em sua mão, a casca que ali havia na pele da velha rachou, provocando nela um choque de surpresa e dor. Deixou de sentir a mão do menino, e ficou parada a observar sua própria mão, endurecida, enrugada, crespa e cascuda com uma pequena rachadura a percorrer-lhe a palma até os dedos.

Olhou para o menino e viu que este lhe sorria.

Ela tentou sorrir-lhe de volta, e a boca enrugada de lábios finos e dentes gastos, rasgou-se num sorriso, fazendo uma nova rachadura, agora em seu rosto.

O menino estendeu suas mãos sempre a olhar para ela, e reteve nas tuas, as mãos endurecidas dela.
Quando os dedos da velha se moveram para entrelaçar os dedos do menino, novas rachaduras surgiram, fazendo a pele enrugada rachar ainda mais. Quase que se podia ver cor através das rachaduras que iam se abrindo.

O menino sorrindo-lhe e sem dizer palavra, transformava-se aos olhos da velha num menino cada vez mais novo, numa criança cada vez mais pequenina e ia sorrindo-lhe mais à medida que se ia aproximando.

A pele dele era como a pele de um bebê, e a maciez tão grande sob a casca tão dura da velha era como ácido a derreter e despedaçar a casca que ali havia.

Então o menino a abraçou forte e apertado. Não disse palavra alguma, não pediu licença, não demonstrou medo nem insegurança, apenas demonstrava que precisava daquele abraço. A velha tentou retribuir o abraço, e fez um esforço enorme para mover os braços endurecidos e velhos e colocá-los à volta do menino.


Naquele abraço silencioso e duradouro, o calor fez derreter cada pequenina ruga da velha, cada músculo de sonho flácido voltando a ganhar tenacidade, e a velha conseguiu sorrir sem a casca que lhe cobria o rosto.

Depois de instantes, olhou para o chão, para a sombra dos dois, e só o que viu foi a sombra de duas crianças a brincar.

Sonhos

Tenho me lembrado de sonhos que haviam ficado guardados na gaveta e começaram a ganhar o pó do dia-a-dia daquilo que se faz necessário ao invés daquilo que se havia sonhado.

Tenho visto como eram ingênuos os sonhos que eu guardava, e assusto-me ao perceber que apesar da ingenuidade deles, há quem os tenha conseguido conquistar. Há sempre uma busca por equilíbrio, e na tentativa de equilibrar nem sempre me lembrei daquilo que deixei se perder.

Por muitos anos, olhei para mim mesma e vi-me menor do que eu era, mas sonhava tanto e tão alto, que buscava ser maior do que eu um dia poderia ser. Entre a forma com que me via e a forma com que me sonhava, ficaram guardados os sonhos do que nunca consegui ser.

E assim, sonhando alto e fazendo malabarismos entre os dias do quê era possível e do que eu sonhava, fui transformando-me em mais do que eu era e em mais do que pensei.

Assusta-me não saber se os sonhos que sonhei e guardei um dia, ainda são sonhos que tenho. 

Transformei-me, e no processo, não me lembrei de transformá-los também.


Tenho me lembrado de sonhos que ficaram guardados na gaveta, e o que hoje me assusta não são os sonhos guardados, mas o confronto de mim comigo mesma e a surpresa de que a pessoa que me tornei, hoje é capaz de realizá-los sem sonhá-los mais.

25 de abr. de 2017

Amor

Amor, eu não sou nada.
Sou ninguém, quando consigo ir para além da casca que me cerca, que me prende e tanto aprisiona.
Vivo, porque assim tem que ser e é, mas a pulsação do que sinto transcende o meu viver – é sim, Amor.
As dores, os medos, as dúvidas, incertezas, problemas, é tudo casca, Amor. Tudo temporário, tudo ilusão. Posso, claro, escolher “ser” a casca que me cerca ou então ser para além dela, o que em essência e verdade eu já sou, Amor.
Uma corda de equilibrista, um malabarista, um ser a caminhar entre escolhas e estradas tortas, escolhas e consequências, problemas e aflições, pensamentos e dúvidas... só casca, Amor.
E quão difícil é romper tal casca! Quão difícil é “ser” para além do apego da casca que prende, que ilude, que contamina. Pois é, Amor. A “matéria” é a tragédia da vida, a essência da matéria a salvação (Amor).
Agape

4 de abr. de 2017

Simplicidade

Tenho andado distraída, a inventar coisas para ocupar o tempo, a cabeça, os pensamentos. A procurar (não preciso procurar muito) por razões para me preocupar e por problemas e questões que tenho que resolver.
Aqui dentro de mim, algumas cobranças que me coloco, algumas situações que mereciam alguma decisão (e ação) mais concretas de minha parte. Mas, tenho andado distraída. Muito.
Não procuro por justificativas ou desculpas para as coisas, visto que não há mesmo qualquer razão ou necessidade de justificar o que quer que seja, assim como também não há para fazer (ou deixar de fazer) isto ou aquilo.
Agora pouco fui ao quintal, e mais do que ver, senti o que de facto é o real das coisas, desta minha vida de agora.
Perco demasiado tempo a pensar e a desejar coisas que simplesmente... não são, não "existem" aqui, ao menos não neste momento.
É complicado as vezes tentar encontrar algo que “tape” o vazio que é não ter o que um dia foi um espaço totalmente preenchido. A vida um dia foi, realmente, um espaço totalmente preenchido. Quando estávamos todos juntos, e partilhávamos tudo.
É muito provavelmente o tempo a passar que me deixa assim. E de tantas e tantas formas já preenchi e tentei preencher este “vazio”...
Hoje penso que todas as decisões que tomei, e todas as escolhas que fiz, foram, de certa forma, uma busca de preenchimento. Casar, mudar de casa, de trabalho, de país, divorciar, namorar, romper... tudo, de certa forma, decisões e escolhas para preencher um tempo que passou, mudou, transformou-se, um vazio que permaneceu.
E recentemente percebo que encantam-me cada vez mais as coisas mais simples da vida. Tenho e sinto mesmo uma admiração até esmagadora pela simplicidade. Pessoas que encontro, vidas que observo... e admiro. E é muito mais fácil observar e reconhecer a simplicidade “nos outros”.
Já fui bióloga. Já escrevi artigos, já cuidei de paraplégicos, já acompanhei deficientes mentais. Já trabalhei em restaurantes, hotéis, já geri e já “controlei” mais situações e pessoas do que teria sido necessário para perceber o que 20 segundos agora pouco me fizeram perceber.
Sei o que me faz falta, e sei agora que simplesmente não vale a pena “buscar”. Não são coisas que se possam “procurar” nem encontrar, ainda que se caminhem distâncias incríveis, ou que atravesse montanhas, oceanos ou mesmo alternativas diferentes de vida. Simplesmente, são coisas que não se podem “buscar”. São existentes ou não. Fazem parte ou não. Acontecem ou não. Temos ou não temos.
A vida segue um ritmo próprio, sendo levada e acontecendo conforme nossas escolhas e ações.
A verdade das coisas e dos factos é que tudo trouxe-me para este canto, este instante, onde o que existe é mesmo pouco (ou muito) dependendo de com o quê comparo. O “pouco” reside no silêncio, na solitude, na calma e na paz que busquei – porque precisava encontrar para ouvir-me à mim mesma. E o muito, está justamente na simplicidade e na paz destas mesmas coisas.
Já não escuto faz muito tempo a risada deliciosa dos meus sobrinhos, das minhas irmãs e irmão, dos meus pais. Já faz imenso tempo que não “perdemos” tempo fazendo coisa nenhuma a não ser companhia uns aos outros a partilhar as “bobagens” importantes da vida.
E não é uma questão de saudades apenas. É também e principalmente uma questão das escolhas, da vida que segue um rumo que nem sempre é facilmente compreensível. A vida que na verdade, acabei por escolher.
Eu sei que nunca soube ou consegui explicar bem o por quê das minhas escolhas, nem para ninguém nem para mim mesma. Gostaria mesmo muito, muito, muito mesmo de ter uma resposta fácil e compreensível para isto... mas não tenho... apenas sinto.
Foi como se uma espécie de certeza me guiasse para que eu de alguma forma conquistasse uma vida que me fizesse sentido, que me trouxesse um “sossego” interior. O sentido da vida, este não sei se um dia será uma resposta encontrada mas cada vez também tem menos importância ter ou não ter. Mas este “sossego” interior eu de facto conquistei.
Já tive muito mais "coisas" do que tenho agora, mas o que tenho agora dá-me paz. E eu poderia ter menos, bem menos, é verdade, e a paz seria igual ou quem sabe, maior. A casa não precisava ser tão grande. O espaço à volta traz-me mais “culpa” do que realização, visto que não o aproveito como deveria (e meus brócolos ainda por cima morreram), mas gosto de saber que tenho aqui atrás de mim um espaço onde, se eu quiser, posso sentar debaixo de uma árvore ou sem querer, como aconteceu dias atrás, ver-me avisada de que tinha imensos aspargos selvagens prontos para consumo (só me resta saber como prepará-los). Gosto das descobertas que se tornaram possíveis -  e de não sentir medo ou insegurança.
Gosto de ter a porta da frente sempre aberta, e de vez em quando sair para ver os cães a brincar ou deitados muito pacíficos à sombra do pinheiro da frente. Ouvir os passarinhos.
Gosto de ter meu carro parado ao portão, pronto para levar-me onde quer que eu decida ou queira ir.
Gosto do que tenho, do que conquistei, muito embora eu mesma as vezes pense que não tenho absolutamente nada – mas à bem da verdade, tenho imensamente mais do que um dia pensei ter. E principalmente, vendo bem... conquistei algo que nunca tinha me julgado ser capaz de conquistar... estar bem comigo mesma mesmo sem ninguém por perto e com quase nada. Afinal de contas... tenho a todos em mim, inclusive a mim mesma.

Agora resta-me é saber o que fazer... com tanto.

27 de mar. de 2017

Texugo


Ia para casa, mas se eu fosse então eu ia pensar...
Observei a chuva para tentar inventar um roteiro.
Algo, qualquer coisa para me impedir de sonhar...
A cabeça não parava, perdi-me em um candeeiro.


A chuva lembra água, que me leva então para uma barragem;
O sol lembra luz, que me traz na mente uma estrela cadente...
Tudo me transporta! De nada vale roteiro, mudo de abordagem;
Para desviar o pensamento só mesmo se tivesse dor de dente...!


Inventei mil e uma coisas para tentar me entreter,
Para evitar a qualquer custo chegar perto do virtual
Sei lá eu no futuro o quê é que vai vir a acontecer...
Sei é que guardarei em mim e comigo "o" Portal. (Portel)

14 de mar. de 2017

Loucura

Encosto-me ao batente da porta, a olhar para os pássaros, os cães e as laranjeiras sem ver coisa alguma.
Sinto-me como se estivesse à janela, e o que vejo cá dentro como se fosse “lá fora” é uma vida que me encanta. Que me fascina. Que me trás lembranças de uma felicidade simples que os anos deixaram empoeirada nas prateleiras das recordações.
Uma ternura doce e esforçada, batalhada dia-a-dia com a força de um coração puro que me desarma dos meus frágeis sonhos e das ilusões.
Olho como se olhasse através da janela (que não há), e não seguro o anseio de pertencer à paisagem que não é aquela que tenho à frente, apenas à janela (que imagino).

Mas se por acaso, olho-te a ti... ai! Que até as laranjeiras perdem a cor, e silenciam os pássaros...

13 de mar. de 2017

Tubarões

Estar onde é fácil se estar, sem pensar que aquilo pode levar à algum lugar,
Guardando no entanto em algum recanto a esperança de que possa...
Como provocar com cheiro de sangue fresco um mar onde se pensa (sem certezas)
Não existirem tubarões.
Provocar por quê? Eles podem acabar por surgir...
E surgem.
E embora seja emocionante descobrir que afinal existiam,
Fazer o quê com as mãos agora ensanguentadas?
A satisfação de encontrar aquilo que em silêncio se buscava,
E a dúvida do que fazer então à seguir.
E a natureza selvagem em mim não se contenta em observar as barbatanas,
Quer jogar-se à água! Quer nadar com eles, quer ver se de facto abrem a boca!
Vê as realidades tão distintas que já foram experimentadas e pensa (louca):
Nunca vivi ainda no fundo do mar! Nunca nadei com tubarões! Será que consigo?
E o lado racional argumenta... pensa... reflete e olha nos olhos do tubarão (do qual só se vê a barbatana) – e alimenta e desperta... oh raio da empatia!
Vê-se então também como um tubarão...
Sem as nadadeiras, sem o corpo cartilaginoso e sem a competência de nadar feito tubarão (oh raios, nem sequer brânquias eu tenho) – será que consigo?
E reflete mais... (e pior)
Eu poderia ser um tubarão... quem foi que disse que não posso?
Poderia aprender a ser um tubarão...
Então olho para as mãos ensanguentadas que chamaram os tubarões...
Olho para as barbatanas ao meu redor...
É, eu adoraria ser um tubarão. Adoraria mesmo...
E partilhar dos nados, dos saltos, dos intintos...
Seria mesmo tão bom. Viver um pouquinho dessa vida de tubarão.
Mas percebo (à tempo?): Não sou um tubarão.
Triste, a despedir-me do sonho (tão bom!) de ser tubarão, pego em água, e lavo minhas mãos.

Entretanto e já com as mãos limpas, fica a pergunta... não teria eu alguma responsabilidade por ter acordado os tubarões? O quão justo é sair “ilesa”? São eles tubarões... sou eu pessoa. A natureza deles é o instinto, a alimentação. A natureza minha... é apenas acreditar... e provocar tubarões?

Hábitos

Não faz assim tanto tempo, eu não conduzia. Tambem não faz assim tanto tempo, havia muita coisa que eu não fazia.
De uns anos pra cá, talvez eu pudesse dizer que minha vida mudou. Mas seria um erro, fui eu a mudar a minha vida e o passado que acabou.
A verdade é que no percurso, cometi um engano brutal. Mudei os contextos e tudo ao redor, até gostos, mas não os velhos hábitos - erro fatal.
Hábitos nos fazem ser quem somos e nos leva para onde estamos. Podemos mudar de sítio, e de realidade, mas somos de facto o hábito que em nós, plantamos.
Toda mudança por mais impossível que pareça é possível de criar. Qualquer lugar ou verdade que se queira inventar. Mais difícil são os hábitos de se conseguir modificar.
À minha volta, tudo agora pode ser completamente diferente. Mas minha verdade é a mesma, assim como eu sou, uma vez que meus hábitos não andaram para frente.

Assim, torna-se clara a profunda realidade... Nenhum passo teria sido necessário caminhar, se eu soubesse antes desta simples verdade: Basta apenas mudar de hábitos, antes que seja tarde!

12 de mar. de 2017

Dois Lados

Ando por essa ponte, tão alta e tão estreita que balança para a direita, balança para a esquerda, estremece, ameaça mas não cai nem tão pouco se equilibra.
Essa ponte que me divide, que me corta e me separa pelo meio. Uma metade terra, a outra metade ar. Uma metade terrena, a outra metade luz. E o coração por inteiro em cada uma das metades.
O amor do espírito e o amor da luz. E não, não me digam que se trata do mesmo amor. Pois não é. Não é e nem é ao menos parecido. São mais opostos do que semelhantes.
Em comum muitas coisas, desde que não se trate de escolhas – apenas de sentimento.
Pois em comum está o desejo do bem, a intenção de saber o coração amado, feliz. E apenas isso, pois de resto se conflitam, se atormentam. O amor do espírito gosta da proximidade, do abrigo, do conforto na alma. O amor da luz não vê distância, nem sequer se importa com a existência ou ausência de tempo e espaço. Nem mesmo considera essas coisas – elas não existem. O amor do espírito busca, procura crescer, amadurecer, auxiliar. É ativo e entusiasta. O amor da luz é passivo, transcende por osmose, é como a luz refletida por um lago – o movimento pode ou não existir nas águas, a luminosidade não se altera.
E essa ponte, essa trilha é estreita, é de extremos, é incerta. Não há desvio errado ou ruim, não há escolha mal feita. Mas há escolha.
E as escolhas envolvem ganhos, envolvem perdas. E envolve amor. Tudo envolve amor.
Qual é o amor mais forte? Qual é o amor mais certo?
Mas há talvez o amor mais desapegado, o mais calmo, o mais humilde. O amor da compreensão e abnegação, o amor imutável, inatingível, a chama que arde para sempre.
Talvez nem seja nada disso. Talvez não existam diferentes amores, talvez a única coisa que os diferencie seja o foco – e o sentimento seja o mesmo.
Pode sim haver o foco talvez no espírito, talvez na luz, talvez num anseio ou em um desejo. Mas quem sabe sejam apenas os focos...
Focar em uma paixão, focar em um trabalho, em uma ambição... o foco, embora o sentimento seja o mesmo. O puro, o poderoso amor.
E nossas histórias, nossas experiências, nossos medos e nossas dores sejam a lente de nossos focos. E não poderão haver focos errados, mas sim em seu lugar mágoas profundas... como alterar a lente para obter diferente imagem? A imagem não muda... mudam os nossos olhos.
E então, no fundo de tudo, o amor. Pura e unicamente o amor. O amor que desfocado causa as guerras, as ofensas, as injúrias. As traições, as violências, as torturas. Tudo apenas amor. Amor para defender a ferida inflamada, para proteger as esperanças dilaceradas e as perdas ao menos suportáveis. As eternas procuras por justificativas, desculpas para agir conforme o foco do nosso amor...
E assim minha ponte desaba, não oscila, experimenta balançar de forma mais lenta e contida, experimentando o ligeiro movimento. Estremece e para, avaliando se afinal deixaram de existir as metades esquerda e direita. Parece que fundiram-se, encontraram a forma de as unir.
Podemos nos tornar caleidoscópios, cristais... reflexos de um único sentimento capaz de transbordar em todas as direções.

7 de mar. de 2017

O tempo não me engana, não!

Crescer é uma mentira, a maior mentira que já nos contaram. Quando olho no espelho, os cabelos brancos são uma mentira, mais mentirosos ainda do que a madeixa azul que pintei com tinta.
O tamanho que eu tenho, as roupas que eu visto e os sapatos que calço são igualmente mentirosos, mais verdadeiro são os cachos que já não tenho e os meus dentes de leite que já caíram.
Verdade é o que vejo quando fecho os olhos e consigo ver minhas irmãs pequenas, rindo. Ou o Pedrinho e o Caio a jogar bola no corredor de casa, uma casa que já não existe mas que é mais real do que qualquer casa em que eu entre.
Verdade é quando fecho os olhos e estou no colo da minha mãe, ou no abraço do meu pai. O resto são mentiras que nos contaram.
Crescer é uma mentira. Sofrer é uma mentira. A única verdade é o sentimento que nos invade quando nos lembramos.
Tudo passa, absolutamente tudo. E só a verdade permanece, sempre. E é esta a verdade que guardo, que faz de mim quem sou e que habita em mim.
Verdade é conseguir ver minha mãe como criança, de vestidinho branco e fita no cabelo com o coração cheio de luz. Verdade é ver meu pai rindo e brincando espalhando alegria por todos os lados.
O resto são ilusões que nos disfarçam e amordaçam, coisas tolas que o tempo tenta nos convencer a acreditar.

Verdade são os abraços que nunca se desfizeram e os olhares que nunca se deixaram de olhar.

18 de fev. de 2017

Uma casinha no meio de lugar nenhum

Que venha a vida. Que venha o pulsar do coração nas veias, o arrepio nos poros, o sorrir na alma. Que venham as cores, que o vento sopre para longe o que era cinza e faça com que brilhe o sol.
Que eu saiba, dentro de tudo aquilo que não sei, deixar abertas as janelas e deixar que o calor me chegue à pele.
Descalçar os sapatos, despir os casacos, soltar os cabelos e tirar dos dedos os anéis e do espírito as correntes.
Esquecer-me do relógio, do telemóvel, do computador e dos afazeres que o mundo achou que deviam ser meus.
Ajoelhar-me na terra úmida e ouvir os pássaros que nunca deixaram de cantar, mesmo quando eu não os ouvia. Curvar-me até ter a testa no chão, afundar os dedos na terra como se para sorver toda a energia que me esqueci de sentir.
Permitir que a brisa sobre mim seja um beijo, e que a natureza seja o abraço que não senti. Esquecer-me de tudo que já não sou e deixar-me ser quem me tornei.
Aceitar o que me chegar, deixar ir o que não veio. Não lamentar pelo que não foi ou que não pôde ser.
Reconhecer que ninguém me rasgou o peito para além de mim mesma, e o rasgo que fiz foi o que me permitiu brotar. Tornar-me a semente que antes adormecia cá dentro, e elevar o broto que criei. Que se tornem folhas os meus dedos e minhas mãos. Que se torne tronco e árvore o resto de mim.
Em pé, entre as amendoeiras e pinheiros que eu seja o vento que me sopra, a luz entre o entardecer e o anoitecer que tinge com tons de rosa e de azul a página em branco que ainda não escrevi.

Solto os restos que poderiam haver presos e contidos, liberto a mente condicionada e limitada e  os pés descalços no chão já nada mais tocam. Misturo-me com a paisagem, transformo-me no Universo em mim que sempre fui, mesmo quando eu ainda não sabia que era.