17 de jul. de 2017

A velha

Era uma velha, muito, muito velha.

Tinha os sonhos todos enrugados, tinha as motivações flácidas e os desejos sem qualquer força de movimento ou vitalidade, tinha a pele em casca, e o coração em pedra. De tão velha, quase que deixava de ser presença para ser apenas uma sombra.

Movia-se entre os dias com a teimosia dos velhos, embora tivesse a sabedoria dos velhos endurecida e também envelhecida.

Olhava à sua volta com olhar observador, única parte em si que ainda emitia algum brilho, ainda que longínquo.

Vivia com gosto porém sem vontade, e quando apareceu um menino nos dias dela, foi sem relutância que o deixou aparecer, como era sem relutância que passava de um para outro dia.

Pouco a pouco começou a surpreender-se com o menino, como ele conseguia dia após dia parecer ainda mais menino e mais criança, mesmo sendo de certa forma, mais velho que ela. Olhava-se as vezes no fim do dia ao espelho, e passava cada vez mais tempo a observar os sonhos enrugados, as motivações flácidas e sem vida, os desejos enrijecidos.

Os dias corriam, e cada vez mais a velha passava mais tempo a observar-se ao espelho, ganhando estranheza cada vez maior ao olhar suas marcas de velhice.

Quando num momento inesperado o menino pegou em sua mão, a casca que ali havia na pele da velha rachou, provocando nela um choque de surpresa e dor. Deixou de sentir a mão do menino, e ficou parada a observar sua própria mão, endurecida, enrugada, crespa e cascuda com uma pequena rachadura a percorrer-lhe a palma até os dedos.

Olhou para o menino e viu que este lhe sorria.

Ela tentou sorrir-lhe de volta, e a boca enrugada de lábios finos e dentes gastos, rasgou-se num sorriso, fazendo uma nova rachadura, agora em seu rosto.

O menino estendeu suas mãos sempre a olhar para ela, e reteve nas tuas, as mãos endurecidas dela.
Quando os dedos da velha se moveram para entrelaçar os dedos do menino, novas rachaduras surgiram, fazendo a pele enrugada rachar ainda mais. Quase que se podia ver cor através das rachaduras que iam se abrindo.

O menino sorrindo-lhe e sem dizer palavra, transformava-se aos olhos da velha num menino cada vez mais novo, numa criança cada vez mais pequenina e ia sorrindo-lhe mais à medida que se ia aproximando.

A pele dele era como a pele de um bebê, e a maciez tão grande sob a casca tão dura da velha era como ácido a derreter e despedaçar a casca que ali havia.

Então o menino a abraçou forte e apertado. Não disse palavra alguma, não pediu licença, não demonstrou medo nem insegurança, apenas demonstrava que precisava daquele abraço. A velha tentou retribuir o abraço, e fez um esforço enorme para mover os braços endurecidos e velhos e colocá-los à volta do menino.


Naquele abraço silencioso e duradouro, o calor fez derreter cada pequenina ruga da velha, cada músculo de sonho flácido voltando a ganhar tenacidade, e a velha conseguiu sorrir sem a casca que lhe cobria o rosto.

Depois de instantes, olhou para o chão, para a sombra dos dois, e só o que viu foi a sombra de duas crianças a brincar.

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