30 de jul. de 2017

Eu não queria

Eu não queria dizer-te adeus.
Não queria deixar passar-me ao lado toda a estrada que não percorremos, todas as viagens que não fizemos, toda a vida que não vivemos.
Eu não queria dizer-te adeus, nem afastar os meus olhos e meus risos dos teus.
Não queria deixar vir o tempo em que passarás a ser uma vaga lembrança, algo remoto dentro de mim que nem vou lembrar-me muito bem.
Não queria que chegasse o instante em que vais ligar e vou ter que perder alguns instantes até recordar-me de quem és, para então decidir se vale ou não a pena atender-te. Não queria...
Não queria deixar passar-me ao lado as noites estreladas em meio a lugar nenhum que não tivemos, o barulho das ondas do mar a quebrarem em nossos ouvidos entorpecidos pelos sons de nós mesmos que não chegamos a escutar.
Não queria deixar de viver o que ainda não vivemos.
Não queria deixar o calor e a exaustão dos dias tomarem maior força que a vontade do encontro de nós mesmos.
Não queria deixar-te ir, não queria dizer-te adeus.
Não queria que as obrigações e o tempo que marca o relógio se tornassem maior do que os sonhos que não chegamos a sonhar.
E quando nos afastamos, quando deixamos de nos falar, entender e compreender, eu não queria não conseguir dizer que não te queria dizer adeus.
Porque sei que em algum lugar estás e estarás sempre, e os dias me irão levar para diante e para o esquecimento, e a lembrança de tudo que poderia ter sido deixará de ser, pois nunca terá sido nada.
Eu não queria.
Mas não sabes.
Não sabes evitar o que eu não queria...
Nem eu.

30 Julho, 2010 - Ilusões

30 de Julho de 2010, Ilusões:
Eu queria me agarrar em ilusões, com toda a força que posso concentrar nas minhas mãos. Queria usar cada centímetro dos meus músculos para agarrar ilusões de tal forma que nunca pudessem se transformar ou partir.
Queria escolher a minha realidade, desenhá-la à minha maneira com as cores que eu escolhesse, sem temer que um dia o desenho torne-se borrado ou nebuloso.
Pois existe muito mais encanto e fascínio no mundo que nossa mente pode produzir do que existe muitas vezes naquilo que de fato está a nossa volta. É muito mais fácil viver de sonhos, de ilusões e das expectativas que nosso coração pode criar do que naquilo que nossos olhos muitas vezes não querem enxergar.
Fomos criados assim, em meio a contos de fadas, a histórias de finais felizes e príncipes encantados. Somos como eternas crianças tentando abandonar a primeira infância, temendo pelas coisas que vemos ruir a nossa volta, à percepção de que nossos pais não são súper heróis e de que não somos capazes de voar.
Em algum momento foi implantada em nós a vontade de voar, de ter asas e de alcansar o céu. Uma parte de nós, por mais que o tempo passe e que creçamos, ainda acredita nessa capacidade. Precisa acreditar, senão o mundo torna-se cinzendo, duro, feito de concreto e asfalto.
Nem tudo aquilo que se quer é possível de ser conquistado, nem todos os sonhos são realizáveis, e nada tem a ver com a nossa força, coragem ou capacidade. Está muito mais relacionado com a realidade dos fatos.
Pessoas que gostamos ou amamos (ou pessoas que gostaríamos de gostar e amar) não são perfeitas, não possuem o dom de transformar as nossas vidas e nos devolver a capacidade de acreditarmos nas coisas que gostaríamos. Somos nós, sempre nós mesmos, os únicos capazes de transformar qualquer coisa em nós ou em nossa vida. Mas continuamos a teimar em encontrar alguem capaz de fazer isso por nós, ou alguém que nos sirva como alavanca para as transformações que precisamos em nós.
Quando caem essas projeções, crenças, nos vemos sozinhos novamente, e iniciamos novamente a procura por outra alternativa. Um ciclo constante de procura, desejos, ilusões e decepções. Ninguém é capaz de nos decepcionar, são apenas as nossas idéias e projeções que caem por terra. E como nos livrarmos dessas projeções, desses desejos, desses sonhos, se esta é a natureza do nosso ser?
Nenhum amigo, pai, mãe, ou seja quem for é capaz de nos desiludir, de nos decepcionar. É a idéia que fazemos daquela pessoa que se desfaz, que se desmancha em frente aos nossos olhos como pequenos castelos feitos na areia quando vem a água do mar.
Por isso é tão importante a compaixão, a compreenção, o perdão e a aceitação. Somos todos feitos da mesma matéria de desejos e sonhos. Somos todos frágeis, lutando nossas próprias batalhas, ora perdendo, ora conquistando.
Ver a fragilidade, fraqueza e defeitos de outra pessoa pode nos fazer escolher desencantarmo-nos com ela ou sermos tomados por uma imensa onda de compaixão e respeito, pois é através de outra pessoa que podemos ver a nós mesmos. Essa é a verdadeira essência do perdão e do amor.
Não importa quais sejam as fraquezas ou defeitos, não importam quão feios nos pareçam, pois somos feitos todos da mesma matéria. Uma massa de argila que cada um, ao longo da vida, procura moldar da melhor maneira possível, somos todos nós os escultores de nosso próprio ser, e podemos a todo instante escolher a forma com que vamos nos moldar.
Nesse percurso, cada um faz a melhor escultura possível, aquela que lhe parece a mais delicada e bonita ou aquela que parece a mais resistente e impactante, é a arte de viver.
Agape - Desassossego

24 de jul. de 2017

Será que aceito?

Enquanto espero, tomo um gelado na esplanada e fico a observar as pessoas em contínuo movimento, algumas a sair da praia (a maioria) e outras a trabalhar. Escuto indistintamente as conversas à minha volta e reparo nas expressões em seus rostos.
Não pertenço à nada disto, é um facto. Quanto tempo mais levarei para aceitar isso, não sei.
Não pertenço à este ritmo, à estes valores, à estes interesses e cotentamentos.
Pela primeira vez, tomo real consciência do quanto estou distante disto tudo. Do quanto sempre fui distante disto tudo.
Não que eu não tenha tentado encontrar uma forma de "entrar" ou de "fazer parte", e foi talvez sempre este o meu erro - tentar ser como não sou.
Ainda não sei, claro, se o facto de tomar consciência disto faz-me pronta para aceitar o facto como é, não sei se ao tomar consciência, automaticamente aceito minha verdade.
Mas que faz-me mais leve, isso faz.

17 de jul. de 2017

A velha

Era uma velha, muito, muito velha.

Tinha os sonhos todos enrugados, tinha as motivações flácidas e os desejos sem qualquer força de movimento ou vitalidade, tinha a pele em casca, e o coração em pedra. De tão velha, quase que deixava de ser presença para ser apenas uma sombra.

Movia-se entre os dias com a teimosia dos velhos, embora tivesse a sabedoria dos velhos endurecida e também envelhecida.

Olhava à sua volta com olhar observador, única parte em si que ainda emitia algum brilho, ainda que longínquo.

Vivia com gosto porém sem vontade, e quando apareceu um menino nos dias dela, foi sem relutância que o deixou aparecer, como era sem relutância que passava de um para outro dia.

Pouco a pouco começou a surpreender-se com o menino, como ele conseguia dia após dia parecer ainda mais menino e mais criança, mesmo sendo de certa forma, mais velho que ela. Olhava-se as vezes no fim do dia ao espelho, e passava cada vez mais tempo a observar os sonhos enrugados, as motivações flácidas e sem vida, os desejos enrijecidos.

Os dias corriam, e cada vez mais a velha passava mais tempo a observar-se ao espelho, ganhando estranheza cada vez maior ao olhar suas marcas de velhice.

Quando num momento inesperado o menino pegou em sua mão, a casca que ali havia na pele da velha rachou, provocando nela um choque de surpresa e dor. Deixou de sentir a mão do menino, e ficou parada a observar sua própria mão, endurecida, enrugada, crespa e cascuda com uma pequena rachadura a percorrer-lhe a palma até os dedos.

Olhou para o menino e viu que este lhe sorria.

Ela tentou sorrir-lhe de volta, e a boca enrugada de lábios finos e dentes gastos, rasgou-se num sorriso, fazendo uma nova rachadura, agora em seu rosto.

O menino estendeu suas mãos sempre a olhar para ela, e reteve nas tuas, as mãos endurecidas dela.
Quando os dedos da velha se moveram para entrelaçar os dedos do menino, novas rachaduras surgiram, fazendo a pele enrugada rachar ainda mais. Quase que se podia ver cor através das rachaduras que iam se abrindo.

O menino sorrindo-lhe e sem dizer palavra, transformava-se aos olhos da velha num menino cada vez mais novo, numa criança cada vez mais pequenina e ia sorrindo-lhe mais à medida que se ia aproximando.

A pele dele era como a pele de um bebê, e a maciez tão grande sob a casca tão dura da velha era como ácido a derreter e despedaçar a casca que ali havia.

Então o menino a abraçou forte e apertado. Não disse palavra alguma, não pediu licença, não demonstrou medo nem insegurança, apenas demonstrava que precisava daquele abraço. A velha tentou retribuir o abraço, e fez um esforço enorme para mover os braços endurecidos e velhos e colocá-los à volta do menino.


Naquele abraço silencioso e duradouro, o calor fez derreter cada pequenina ruga da velha, cada músculo de sonho flácido voltando a ganhar tenacidade, e a velha conseguiu sorrir sem a casca que lhe cobria o rosto.

Depois de instantes, olhou para o chão, para a sombra dos dois, e só o que viu foi a sombra de duas crianças a brincar.

Sonhos

Tenho me lembrado de sonhos que haviam ficado guardados na gaveta e começaram a ganhar o pó do dia-a-dia daquilo que se faz necessário ao invés daquilo que se havia sonhado.

Tenho visto como eram ingênuos os sonhos que eu guardava, e assusto-me ao perceber que apesar da ingenuidade deles, há quem os tenha conseguido conquistar. Há sempre uma busca por equilíbrio, e na tentativa de equilibrar nem sempre me lembrei daquilo que deixei se perder.

Por muitos anos, olhei para mim mesma e vi-me menor do que eu era, mas sonhava tanto e tão alto, que buscava ser maior do que eu um dia poderia ser. Entre a forma com que me via e a forma com que me sonhava, ficaram guardados os sonhos do que nunca consegui ser.

E assim, sonhando alto e fazendo malabarismos entre os dias do quê era possível e do que eu sonhava, fui transformando-me em mais do que eu era e em mais do que pensei.

Assusta-me não saber se os sonhos que sonhei e guardei um dia, ainda são sonhos que tenho. 

Transformei-me, e no processo, não me lembrei de transformá-los também.


Tenho me lembrado de sonhos que ficaram guardados na gaveta, e o que hoje me assusta não são os sonhos guardados, mas o confronto de mim comigo mesma e a surpresa de que a pessoa que me tornei, hoje é capaz de realizá-los sem sonhá-los mais.