18 de mar. de 2016

Eu era uma Árvore que morreu

Sim, a bem da verdade, é preciso que se diga... Eu quis um dia ser como uma árvore, de tronco forte e raízes sólidas, que pudesse se envergar com os ventos mais intensos e ainda assim não quebrar. Quis imaginar que o inverno tornaria-me mais reclusa, para reunir forças para a próxima primavera que viesse. Eu realmente quis ser assim... quis acreditar que sendo uma árvore, teria minhas raízes tão fincadas que seria como ter os pés no inferno, mas de forma que as folhas ou minha consciência pudessem estar quase que tocando os céus. Porém, um dia dei-me conta que humanos não são como árvores, que é preciso mover-se, embora existam pessoas que consigam encontrar-se mesmo sem movimento algum. Não sou uma dessas pessoas, embora gostasse de ser. Comecei a me fazer perguntas demais, perguntas que jamais me deixariam em paz se eu não buscasse suas respostas. E a árvore que eu quis um dia ser, aos poucos viu suas raízes apodrecerem... Pouco a pouco, com a doença avançando, o tronco deixou de ser sólido, e a mais leve brisa já bastava para levar embora as folhas antes verdinhas, cheias de vida. Assim, vi-me frente a uma decisão a tomar. Eu podia continuar com meus sonhos de ser árvore, até que a doença me tomasse por inteiro e quando chegasse o próximo inverno, já não haveria qualquer vida em mim. Ou então eu poderia abandonar as raízes, o tronco, os galhos e folhas para tornar-me um fruto, uma pequena semente. Como semente, qualquer vento me levaria embora para lugares estranhos, onde talvez eu jamais pudesse germinar. Poderia levar-me tambem para um lugar de solo fértil cheio de promessas. Eu precisava escolher entre a segurança do lugar conhecido, a previsibilidade das estações e a certeza da morte ou arriscar-me a ser semente. Arrisquei. Hoje, não possuo mais raízes, tronco, galhos ou quaisquer certezas. Mas vejo aos poucos uma pequena folha, tímida, insegura e amedrontada nascer da minha casca rompida de semente. Cheia de coragem, mas ainda com o coração gelado de medo, essa pequena folha trás promessas de um mundo desconhecido, promessa de vida. Aonde a doença das raízes só acontecerá se não se cuidar dessa pequenina alma que nasce agora. E por mais que seja frio lá fora, e que não exista muita chuva, é com o coração repleto de gratidão que vejo vez por outra alguém aparecer com um pequeno regador e jogar um pouquinho de água nessa folhinha que hoje sou eu. E à esses jardineiros da vida e do mundo, todos andarilhos solitários e buscando seus próprios caminhos, eu só posso agradecer, e tentar tornar-me a árvore mais bela que eu puder, oferecendo assim toda a sombra de que eu for capaz quando o verão tornar-se quente demais. Obrigada.

(março de 2010)

1 de mar. de 2016

Caminhantes 1 - O Teatro


Caminhantes – O Teatro
A Subida na Serra

- Estás preparado Filipe ? – pergunta-lhe Tó, pondo-lhe a mão no ombro – Tens a certeza que me queres acompanhar ?
Ele não lhe responde, mas acena afirmativamente com a cabeça.
O frio estava rigoroso. Nunca faz calor durante o inverno na serra, mas todos estavam habituados a estar ali e sempre iam preparados para o frio, fazendo-se acompanhar de roupa adequada para que pudessem ficar muito tempo sem se incomodarem com o avançar da noite.
Mas esta noite tremiam de frio mesmo com toda a roupa que vestiam.  Caía uma chuva miudinha, persistente, gelada.
Sem vento e sem lua, tudo o que acontecia eram gotas de água que caíam dos ramos das árvores.
O vazio, o escuro, o silêncio.
Tó sorriu.
- Hoje vai ser uma noite especial para vocês – disse Tó para o grupo.
De meia idade, bastante magro, Tó tinha o cabelo e os olhos muito pretos. Usava um bigode com alguns pelos brancos a tatuarem a idade que já carregava.
Os olhos de um aspecto antigo, sábio, brilhavam. Era um homem respeitado, educado, e todos lhe reconheciam um mistério no sorriso. Ou alguns achavam-no um homem esquisito e guardavam-lhe distância.
Mas todo o conjunto fazia dele um exemplo a seguir, dentro daqueles que procuram respostas nos mais ínfimos detalhes da Natureza.
Era por isso que ali estavam.
Alexandra, Rui e Susana juntaram-se num abraço enquanto Filipe e Tó iniciavam a escalada.
- Da próxima vez, quero ir eu – disse Alexandra a Tó.
Com aquele sorriso, Tó voltou atrás e beijou-a na face.
- Encontramo-nos lá em cima – respondeu-lhe.
Enquanto eles se dirigiam para a base da escarpa, os restantes seguiram pelo caminho de terra batida.
Alexandra demonstrava a sua preocupação. Era namorada e vivia com Filipe, e há muito que ele se mostrava ansioso por fazer a sua iniciação.
Mas numa noite como aquela, Alexandra achava que era demasiado perigoso.
- Não se preocupem que eles ficam bem – disse Rui para as raparigas. – Vamos concentrar-nos na subida, estamos gelados, e se não levarmos um ritmo certo, vai ser difícil chegar lá acima.
- Assim seja! – diz-lhe Susana, agarrando a mão de Alexandra, sua amiga inseparável.
Alexandra, de cabelos loiros e grandes pestanas, de pele muito branca, escondia-se debaixo do gorro do seu casaco impermeável e apertava o seu cachecol .
O seu instinto apertava-lhe o peito, não conseguia entender a razão, mas nunca duvidara da sua capacidade interior de prever acontecimentos, fossem físicos ou espirituais.
De todos, Alexandra era quem mais sentia aquele lugar, embora com arrepios. Havia sido conduzida lá, havia muitos anos, por Tó.  Fora ele quem lhe apresentou o sítio com que ela há muito tempo sonhava.  Sabia por isso que Filipe estava bem acompanhado, e que não correriam riscos desnecessários, mas sentia que algo importante, e talvez fora de controlo poderia acontecer.  Mas não partilhou esta sensação com ninguém, e acompanhava os passos dos seus companheiros.
Com uma pequena lanterna de Leds a ajudá-los a desviarem-se dos buracos e pedras no meio do caminho subiam para o topo da serra.
Rui era o mais novo de todos. Com um porte atlético e um cabelo sempre muito bem arrumado, assumia-se como um guia naquele momento.
Gostava de liderar, e de certa maneira, sabia como faze-lo.
Era um homem com convicções quase neutras, entre o lado do Bem e o conhecimento do Mal. Balançava constantemente entre o contacto com estes dois lados, mas tinha no seu coração a bondade, o que fazia dele um homem sempre acarinhado.
- Tenho aqui na mochila uma garrafa de água, alguém quer? – perguntou entre passos, ao mesmo tempo em que coloca o seu braço para trás alcançando a pequena garrafa .
- Está tão fria, como se tirada do frigorífico! -  disse, bebendo apenas um gole.
O caminho que tomavam ficou em certo ponto intrasponível. O temporal dos últimos dias partiu várias árvores, e estando uma caída no meio do caminho, tiveram que parar para estudar opções.
- Não temos como passar, pessoal... – Disse Susana enquanto tentava encontrar um caminho, ladeando a árvore.  – Há muitos ramos aqui, e sem ver o que está por baixo deles podemos magoar-nos – disse.
- Cerca de 50m atrás, passamos por um desvio que apesar de ser pelo meio da floresta e não ter caminho aberto, tem saída um pouco mais à frente de onde estamos! Temos lanterna, temos pilhas, e não estamos sozinhos, podemos arriscar.
- Não sei se me agrada muito desviar o caminho, Rui – interrompeu Alexandra. – A minha vontade de ir é muito grande, mas alguma coisa me prende, e talvez esta árvore tombada seja um sinal disso.
- Sinal de quê Alexandra? De ficarmos lá em baixo e termos que esperar horas até que eles regressem? – Respondeu Rui, olhando-a fixamente. – Lá em cima temos abrigo, vamos, venham atrás de mim.
Susana e Alexandra não o acompanharam de imediato. Susana estava muito habituada a seguir os conselhos que Alexandra oferecia, estavam as duas imensamente ligadas, num tipo de relação que se uma chorasse, a outra, mesmo a quilômetros de distância lhe ligava a perguntar porque chorava. Acreditavam numa irmandade das suas almas. Mesmo que separadas, sentiam-se sempre muito próximas.
E de facto assim pareciam ser.  Até aquela noite.
- Quantas vezes já subiste por aqui Tó? – Pergunta Filipe, olhando para cima, não vendo mais do que rochas escuras.
- Mais vezes do que posso contar – respondeu-lhe. – Não receies cair, pois se começares o teu caminho no medo de não alcançares o destino, então muito provavelmente não aprenderás nada com ele ou podes até nem conseguir fazê-lo. Assim, talvez não chegues onde queres.
Filipe seguia Tó, com atenção às suas passadas e palavras em silêncio.
A chuva, que antes não incomodava, começava agora a cair com mais intensidade, e a força da água a cair não o estava a tranquilizar.   A força da chuva veio acompanhada por um nevoeiro que de tão espesso se tornava pesado.
- Agora sim – disse Tó, enquanto retira do bolso de dentro do seu casaco o seu maço de cigarros e dele retira um – Sintra está como sempre deverá estar para aqueles que a sentem : “Mergulhada numa bruma que não se dissipa”.
Depois de várias tentativas acende o cigarro, e dá vários bafos seguidos antes deste ficar completamente molhado.
Olha para Filipe, depois para o cigarro, e erguendo os seus olhos para cima, diz acompanhado de uma gargalhada:
- O único vício que me permitiram ter. – Nesse instante, o cigarro apagado pela chuva é guardado num saco de plástico que Tó guardava no bolso. Nunca, em ocasião alguma deitava lixo para o chão.
- Está na hora de continuar. – Com um gesto carinhoso, aproximou Filipe de si, e amparando-o com um leve abraço diz-lhe que têm que continuar.
Ainda não tinham começado a escalada realmente, mas o terreno já era com subida acentuada e não facilitava não terem qualquer luz para os guiar.
- Sabes Filipe – percebendo como ele já se encontrava apreensivo – muitas vezes me disseste o quanto gostarias de finalmente viveres uma experiência tua, somente tua aqui em Sintra. E aqui está. O teu dia. A tua noite. E não serás só tu. Individualmente, cada um e ao seu jeito, viverá algo hoje que mudará para sempre as vossas vidas.
- Então porque me acompanhas só a mim?
- Porque de todos eles... tu és o próximo.
- O próximo a quê? – respondeu Filipe.
- Mais logo verás. Faz tempo que me dás todos os sinais necessários sobre tuas buscas interiores e algumas dores que ainda carregas. Terás todas as respostas que precisas e que buscas na tua morte simbólica.
Tó nunca fora um homem de muitas palavras, e mesmo assim, cada frase proferida poderia ter vários sentidos, vários significados. Todos poderiam ouvir dele aquilo que pretendiam ouvir, mesmo que não fosse dito (como geralmente ocorre quando muitas vezes ouvimos apenas o quê gostaríamos de ouvir, percebemos apenas o que gostaríamos de perceber, e acreditamos no que nos é mais conveniente acreditar). Mesmo que o conteúdo do discurso de Tó fosse disperso, havia sempre quem encontrasse nas suas palavras a resposta para um determinado enigma pessoal.
Há muito tempo que ele se unira àquele grupo, para os satisfazer das suas curiosidades acerca de Deuses e Deusas, para lições de magia e aulas práticas de energias partilhadas ou qualquer outro mistério que lhes despertasse interesse. Era de facto considerado por muitos como um Mestre. Um humilde homem com capacidade de chegar fundo no pensamento daqueles que o quisessem ouvir.
Tó aproximou-se de uma enorme formação rochosa em forma de um coelho, que dissimulada pela vegetação, mesmo durante o dia só está visível para os mais atentos aventureiros com coragem o bastante para se embrenhar tão fundo na floresta.
Depois de alguns segundos, Filipe não consegue conter o seu pensamento.
- Morte Simbólica?
- Não compliques esse pensamento. Não te falo de uma morte concreta, não creio ser este o teu caminho. Tu sobrevives, deves sobreviver. Melhor, tu reorganizas e reavalias a vida conforme a sentes e de acordo com quem verdadeiramente és. Nunca deste conta, mas todos morremos várias vezes ou deveríamos nos permitir morrer e continuamos depois a viver com os significados que cada morte nos trouxe. Deixa... concentremo-nos agora.
Tó estava agora no topo da sua atenção e com olhos postos no melhor caminho a seguir para a subida íngreme quase como escalada.
- De agora em diante, tens de encarar todos os teus passos como um íman que te atrai à Terra. Um passo em falso, e tenho que te vir buscar cá abaixo.

CAPÍTULO 1


O Teatro