30 de mai. de 2022

Descalçar



Talvez, e não sei bem ainda, eu precise começar por me descalçar.

Descalçar mas não os sapatos, que estes já não uso. Preciso me descalçar dos passos que pensei dar. Me descalçar da direção dos pés, dos passos e de qualquer movimento - porque não há passos para dar.

Preciso aproveitar e também me despir. Me despir de todos os planos, de todos os sonhos, por mais sutís, enraizados ou escondidos que estejam... preciso buscá-los, cavá-los, encontrá-los à todos e um a um, para depois despí-los. Que não fique nem sequer o lenço ou a luva, nem a echarpe e nem a meia, que não sobrem brincos, laços ou enfeites de cabelo - é preciso encontrar e retirar tudo.

E depois, preciso limpar-me. Limpar-me de todas as esperanças e de todas as vontades, de todos os sonhos e de todos os desejos, para poder enxergar o que sobrará de mim sem eles. Sem os sapatos, sem as roupas, sem os acessórios...

E as esperanças são acessórios. Às vezes até chegam a ser verdadeiros casacos, botas ou armaduras. Como os sonhos... como os sentidos...

Preciso encontrar onde se escondem, para tirar delicadamente mas com firmeza todos e cada um deles. O que sobrar, o que restar, e só o resto que ficar, serei eu.

E talvez assim, se e quando sobrar só a essência e o vazio de mais nada, sem direção e sem vontade, sem sonho e sem expectativa, sem calor e sem frio, sem cor e sem perfume, sem futuro e sem passado, aí talvez conseguirei ser eu e mais nada - e não pensar... e não querer... e não sentir. Ser. Só.

Talvez só perca o por que.