27 de abr. de 2016

Intervalo

Parei. Não porque pensei em parar, simplesmente o momento aconteceu.
Parei... e olhei ao redor. Para a vida que "passa", mas que agora existe. Existe e está aqui, agora mesmo, ao alcanse de mim e de qualquer um que a queira e a tome pra si.
Parei... olhei ao meu redor.
Lembrei-me de quando deixei o Brasil pela primeira vez... e pela segunda. E pela terceira, e quarta, e quinta vez.
Lembrei-me do instante em que tornei-me consciente de que já não "morava" mais ali.
Lembrei-me de quando me pus a caminhar saindo de Silves, sem saber como, para onde e nem mesmo "por quê".
Lembrei-me de que os "planos" nem sempre resultam em alguma coisa, e de que as vezes é justamente a falta deles que produz algum resultado.
Estou sem planos.
Nenhuns.
E talvez tenha isso mesmo que tenha produzido em mim esse "intervalo".
Intervalo para apenas lembrar-me... é hora de viver!

18 de mar. de 2016

Eu era uma Árvore que morreu

Sim, a bem da verdade, é preciso que se diga... Eu quis um dia ser como uma árvore, de tronco forte e raízes sólidas, que pudesse se envergar com os ventos mais intensos e ainda assim não quebrar. Quis imaginar que o inverno tornaria-me mais reclusa, para reunir forças para a próxima primavera que viesse. Eu realmente quis ser assim... quis acreditar que sendo uma árvore, teria minhas raízes tão fincadas que seria como ter os pés no inferno, mas de forma que as folhas ou minha consciência pudessem estar quase que tocando os céus. Porém, um dia dei-me conta que humanos não são como árvores, que é preciso mover-se, embora existam pessoas que consigam encontrar-se mesmo sem movimento algum. Não sou uma dessas pessoas, embora gostasse de ser. Comecei a me fazer perguntas demais, perguntas que jamais me deixariam em paz se eu não buscasse suas respostas. E a árvore que eu quis um dia ser, aos poucos viu suas raízes apodrecerem... Pouco a pouco, com a doença avançando, o tronco deixou de ser sólido, e a mais leve brisa já bastava para levar embora as folhas antes verdinhas, cheias de vida. Assim, vi-me frente a uma decisão a tomar. Eu podia continuar com meus sonhos de ser árvore, até que a doença me tomasse por inteiro e quando chegasse o próximo inverno, já não haveria qualquer vida em mim. Ou então eu poderia abandonar as raízes, o tronco, os galhos e folhas para tornar-me um fruto, uma pequena semente. Como semente, qualquer vento me levaria embora para lugares estranhos, onde talvez eu jamais pudesse germinar. Poderia levar-me tambem para um lugar de solo fértil cheio de promessas. Eu precisava escolher entre a segurança do lugar conhecido, a previsibilidade das estações e a certeza da morte ou arriscar-me a ser semente. Arrisquei. Hoje, não possuo mais raízes, tronco, galhos ou quaisquer certezas. Mas vejo aos poucos uma pequena folha, tímida, insegura e amedrontada nascer da minha casca rompida de semente. Cheia de coragem, mas ainda com o coração gelado de medo, essa pequena folha trás promessas de um mundo desconhecido, promessa de vida. Aonde a doença das raízes só acontecerá se não se cuidar dessa pequenina alma que nasce agora. E por mais que seja frio lá fora, e que não exista muita chuva, é com o coração repleto de gratidão que vejo vez por outra alguém aparecer com um pequeno regador e jogar um pouquinho de água nessa folhinha que hoje sou eu. E à esses jardineiros da vida e do mundo, todos andarilhos solitários e buscando seus próprios caminhos, eu só posso agradecer, e tentar tornar-me a árvore mais bela que eu puder, oferecendo assim toda a sombra de que eu for capaz quando o verão tornar-se quente demais. Obrigada.

(março de 2010)

1 de mar. de 2016

Caminhantes 1 - O Teatro


Caminhantes – O Teatro
A Subida na Serra

- Estás preparado Filipe ? – pergunta-lhe Tó, pondo-lhe a mão no ombro – Tens a certeza que me queres acompanhar ?
Ele não lhe responde, mas acena afirmativamente com a cabeça.
O frio estava rigoroso. Nunca faz calor durante o inverno na serra, mas todos estavam habituados a estar ali e sempre iam preparados para o frio, fazendo-se acompanhar de roupa adequada para que pudessem ficar muito tempo sem se incomodarem com o avançar da noite.
Mas esta noite tremiam de frio mesmo com toda a roupa que vestiam.  Caía uma chuva miudinha, persistente, gelada.
Sem vento e sem lua, tudo o que acontecia eram gotas de água que caíam dos ramos das árvores.
O vazio, o escuro, o silêncio.
Tó sorriu.
- Hoje vai ser uma noite especial para vocês – disse Tó para o grupo.
De meia idade, bastante magro, Tó tinha o cabelo e os olhos muito pretos. Usava um bigode com alguns pelos brancos a tatuarem a idade que já carregava.
Os olhos de um aspecto antigo, sábio, brilhavam. Era um homem respeitado, educado, e todos lhe reconheciam um mistério no sorriso. Ou alguns achavam-no um homem esquisito e guardavam-lhe distância.
Mas todo o conjunto fazia dele um exemplo a seguir, dentro daqueles que procuram respostas nos mais ínfimos detalhes da Natureza.
Era por isso que ali estavam.
Alexandra, Rui e Susana juntaram-se num abraço enquanto Filipe e Tó iniciavam a escalada.
- Da próxima vez, quero ir eu – disse Alexandra a Tó.
Com aquele sorriso, Tó voltou atrás e beijou-a na face.
- Encontramo-nos lá em cima – respondeu-lhe.
Enquanto eles se dirigiam para a base da escarpa, os restantes seguiram pelo caminho de terra batida.
Alexandra demonstrava a sua preocupação. Era namorada e vivia com Filipe, e há muito que ele se mostrava ansioso por fazer a sua iniciação.
Mas numa noite como aquela, Alexandra achava que era demasiado perigoso.
- Não se preocupem que eles ficam bem – disse Rui para as raparigas. – Vamos concentrar-nos na subida, estamos gelados, e se não levarmos um ritmo certo, vai ser difícil chegar lá acima.
- Assim seja! – diz-lhe Susana, agarrando a mão de Alexandra, sua amiga inseparável.
Alexandra, de cabelos loiros e grandes pestanas, de pele muito branca, escondia-se debaixo do gorro do seu casaco impermeável e apertava o seu cachecol .
O seu instinto apertava-lhe o peito, não conseguia entender a razão, mas nunca duvidara da sua capacidade interior de prever acontecimentos, fossem físicos ou espirituais.
De todos, Alexandra era quem mais sentia aquele lugar, embora com arrepios. Havia sido conduzida lá, havia muitos anos, por Tó.  Fora ele quem lhe apresentou o sítio com que ela há muito tempo sonhava.  Sabia por isso que Filipe estava bem acompanhado, e que não correriam riscos desnecessários, mas sentia que algo importante, e talvez fora de controlo poderia acontecer.  Mas não partilhou esta sensação com ninguém, e acompanhava os passos dos seus companheiros.
Com uma pequena lanterna de Leds a ajudá-los a desviarem-se dos buracos e pedras no meio do caminho subiam para o topo da serra.
Rui era o mais novo de todos. Com um porte atlético e um cabelo sempre muito bem arrumado, assumia-se como um guia naquele momento.
Gostava de liderar, e de certa maneira, sabia como faze-lo.
Era um homem com convicções quase neutras, entre o lado do Bem e o conhecimento do Mal. Balançava constantemente entre o contacto com estes dois lados, mas tinha no seu coração a bondade, o que fazia dele um homem sempre acarinhado.
- Tenho aqui na mochila uma garrafa de água, alguém quer? – perguntou entre passos, ao mesmo tempo em que coloca o seu braço para trás alcançando a pequena garrafa .
- Está tão fria, como se tirada do frigorífico! -  disse, bebendo apenas um gole.
O caminho que tomavam ficou em certo ponto intrasponível. O temporal dos últimos dias partiu várias árvores, e estando uma caída no meio do caminho, tiveram que parar para estudar opções.
- Não temos como passar, pessoal... – Disse Susana enquanto tentava encontrar um caminho, ladeando a árvore.  – Há muitos ramos aqui, e sem ver o que está por baixo deles podemos magoar-nos – disse.
- Cerca de 50m atrás, passamos por um desvio que apesar de ser pelo meio da floresta e não ter caminho aberto, tem saída um pouco mais à frente de onde estamos! Temos lanterna, temos pilhas, e não estamos sozinhos, podemos arriscar.
- Não sei se me agrada muito desviar o caminho, Rui – interrompeu Alexandra. – A minha vontade de ir é muito grande, mas alguma coisa me prende, e talvez esta árvore tombada seja um sinal disso.
- Sinal de quê Alexandra? De ficarmos lá em baixo e termos que esperar horas até que eles regressem? – Respondeu Rui, olhando-a fixamente. – Lá em cima temos abrigo, vamos, venham atrás de mim.
Susana e Alexandra não o acompanharam de imediato. Susana estava muito habituada a seguir os conselhos que Alexandra oferecia, estavam as duas imensamente ligadas, num tipo de relação que se uma chorasse, a outra, mesmo a quilômetros de distância lhe ligava a perguntar porque chorava. Acreditavam numa irmandade das suas almas. Mesmo que separadas, sentiam-se sempre muito próximas.
E de facto assim pareciam ser.  Até aquela noite.
- Quantas vezes já subiste por aqui Tó? – Pergunta Filipe, olhando para cima, não vendo mais do que rochas escuras.
- Mais vezes do que posso contar – respondeu-lhe. – Não receies cair, pois se começares o teu caminho no medo de não alcançares o destino, então muito provavelmente não aprenderás nada com ele ou podes até nem conseguir fazê-lo. Assim, talvez não chegues onde queres.
Filipe seguia Tó, com atenção às suas passadas e palavras em silêncio.
A chuva, que antes não incomodava, começava agora a cair com mais intensidade, e a força da água a cair não o estava a tranquilizar.   A força da chuva veio acompanhada por um nevoeiro que de tão espesso se tornava pesado.
- Agora sim – disse Tó, enquanto retira do bolso de dentro do seu casaco o seu maço de cigarros e dele retira um – Sintra está como sempre deverá estar para aqueles que a sentem : “Mergulhada numa bruma que não se dissipa”.
Depois de várias tentativas acende o cigarro, e dá vários bafos seguidos antes deste ficar completamente molhado.
Olha para Filipe, depois para o cigarro, e erguendo os seus olhos para cima, diz acompanhado de uma gargalhada:
- O único vício que me permitiram ter. – Nesse instante, o cigarro apagado pela chuva é guardado num saco de plástico que Tó guardava no bolso. Nunca, em ocasião alguma deitava lixo para o chão.
- Está na hora de continuar. – Com um gesto carinhoso, aproximou Filipe de si, e amparando-o com um leve abraço diz-lhe que têm que continuar.
Ainda não tinham começado a escalada realmente, mas o terreno já era com subida acentuada e não facilitava não terem qualquer luz para os guiar.
- Sabes Filipe – percebendo como ele já se encontrava apreensivo – muitas vezes me disseste o quanto gostarias de finalmente viveres uma experiência tua, somente tua aqui em Sintra. E aqui está. O teu dia. A tua noite. E não serás só tu. Individualmente, cada um e ao seu jeito, viverá algo hoje que mudará para sempre as vossas vidas.
- Então porque me acompanhas só a mim?
- Porque de todos eles... tu és o próximo.
- O próximo a quê? – respondeu Filipe.
- Mais logo verás. Faz tempo que me dás todos os sinais necessários sobre tuas buscas interiores e algumas dores que ainda carregas. Terás todas as respostas que precisas e que buscas na tua morte simbólica.
Tó nunca fora um homem de muitas palavras, e mesmo assim, cada frase proferida poderia ter vários sentidos, vários significados. Todos poderiam ouvir dele aquilo que pretendiam ouvir, mesmo que não fosse dito (como geralmente ocorre quando muitas vezes ouvimos apenas o quê gostaríamos de ouvir, percebemos apenas o que gostaríamos de perceber, e acreditamos no que nos é mais conveniente acreditar). Mesmo que o conteúdo do discurso de Tó fosse disperso, havia sempre quem encontrasse nas suas palavras a resposta para um determinado enigma pessoal.
Há muito tempo que ele se unira àquele grupo, para os satisfazer das suas curiosidades acerca de Deuses e Deusas, para lições de magia e aulas práticas de energias partilhadas ou qualquer outro mistério que lhes despertasse interesse. Era de facto considerado por muitos como um Mestre. Um humilde homem com capacidade de chegar fundo no pensamento daqueles que o quisessem ouvir.
Tó aproximou-se de uma enorme formação rochosa em forma de um coelho, que dissimulada pela vegetação, mesmo durante o dia só está visível para os mais atentos aventureiros com coragem o bastante para se embrenhar tão fundo na floresta.
Depois de alguns segundos, Filipe não consegue conter o seu pensamento.
- Morte Simbólica?
- Não compliques esse pensamento. Não te falo de uma morte concreta, não creio ser este o teu caminho. Tu sobrevives, deves sobreviver. Melhor, tu reorganizas e reavalias a vida conforme a sentes e de acordo com quem verdadeiramente és. Nunca deste conta, mas todos morremos várias vezes ou deveríamos nos permitir morrer e continuamos depois a viver com os significados que cada morte nos trouxe. Deixa... concentremo-nos agora.
Tó estava agora no topo da sua atenção e com olhos postos no melhor caminho a seguir para a subida íngreme quase como escalada.
- De agora em diante, tens de encarar todos os teus passos como um íman que te atrai à Terra. Um passo em falso, e tenho que te vir buscar cá abaixo.

CAPÍTULO 1


O Teatro

22 de fev. de 2016

Lisboa


Fecho os olhos enquanto caminho... Lisboa, ah Lisboa! Como é que me tens tanto...
Quanto mais caminho, mais quero levar minhas pernas à exaustão, como se o tempo estivesse sempre a correr contra nós... como se houvesse pressa e urgência em percorrer cada canto e recanto dessas ruas estreitas e das avenidas largas... Deixo-me guiar pela idéia de um destino, mas sinto-me livre o bastante para deixar que me guies à mim, seja lá para onde for... Penso no Camões, vou parar na Gulbenkian sem querer... e tudo é lindo e cheio de sentido, não faz mal se não fui dar aonde eu queria... fui parar onde quiseste que eu fosse.
Por que, Lisboa, por quê?
Caminho e pareço querer engolir-te com meus passos, enquanto és tu que engoles à mim...
Paro numa esplanada, peço um café e tudo que quero é chorar a saudade que me dás. Saudade de não sei o quê! Saudade de não sei quando...
Sou um fantasma pelas ruas de Lisboa... Lisboa é um fantasma dentro de mim...

21 de fev. de 2016

Diferenças

Há pessoas de sonhos e há pessoas de atitudes. Há pessoas de palavras, e há pessoas de ação.
Dizem que "cão que ladra não morde", penso que o mesmo se aplica as pessoas, ao menos de alguma forma.
Há quem se contente com a ilusão, com o mundo idealizado, com a própria imaginação  (limitada). Para ir além do possível, há que se abrir para o que se desconhece, para o que ainda não se imaginou.
Há quem viva em constante procura e insatisfação, e há quem se faça encontrar.
Há quem finja que faz, quem se rodeia de justificativas e espera que o milagre bata à porta. E há tambem quem não se contente com desculpas e escale os obstáculos pelo simples prazer da escalada e da visão que se tem do outro lado.
A vida não "acontece", faz-se. E cada um, faz a própria escolha de como a faz (ou deixa de fazer).
Há gente de todo o tipo...
Um brinde aos que fazem!

17 de fev. de 2016

Vazio

Há que se ter olhos atentos para apreciar o vazio. Perceber na quietude o espaço que tudo contém. Pouco a pouco a solidão não existe, e abre espaço para que o infitino de possibilidades emerja. Os hábitos ditam e regram a vida. Espaços vazios são tomados por liberdade - e tudo cabe no ser que se liberta.
A rotina que não se faz transforma-se em possibilidades várias. O permitir-se dá o gosto e o tom para o ambiente ser o que quer que se deseje fazer dele. A ignorância que antes se fazia bênção faz-se agora equívoco passado.
Deixam de haver respostas quando as perguntas guardam silêncio, e faz-se possível apreciar a simplicidade da vida e dos pequenos pormenores.
O vinho passa a ter o mesmo sabor seja sorvido no resguardo ou na companhia. A arte preeche quaisquer espaços que porventura se façam ainda necessários de preenchimento.
Os séculos de história acompanham qualquer um que caminhe e que se faça vivo, o que não falta são multidões.
As lembranças guardadas e o amor terno mantém os pés no sitio, enquanto que a alma faz-se livre para voar - ou ficar - tanto faz.
Não há urgência e todos os sentimentos do mundo repousam em equilíbrio, serenos.
O vazio faz-se preenchido por ele mesmo, e torna-se suficiente, faz-se dele... prazer.

10 de fev. de 2016

Tudo a seu tempo

Existe uma ausência que é leve, doce... a ausência do querer, a ausência dos planos, a ausência que traduz o ser satisfeito.
Satisfeito com a vida e com o que ela proporciona, com quaisquer resultados e acontecimentos que venham ou que deixem de vir.
Todos os caminhos antes percorridos trouxeram-me aqui. Não é o sítio, não é a cidade... é o estado de espírito. Peças que se unem em um puzzle que se faz completo, abre uma paisagem infinita e de infinitas possibilidades – tanto faz se alguma delas se fará vivida ou não.
Nunca houve destino, nunca houve o lugar para se chegar – mas só agora percebo que nunca houve e que igualmente, também nunca importou. Sem qualquer desejo de chegar a lugar algum, sem qualquer vontade de conquistar coisa alguma... apenas a trajetória – a vida!
Não são objectivos... não há objectivos pra além dos caminhos que conduzem à cada um deles...
Leveza... paz... mas não uma leveza indiferente. Uma leveza plena, feliz, realizada.

Demorei... demorei à chegar e foi um trajeto tortuoso. Se permaneço por muito tempo ou não, também não sei... Mas cheguei aonde queria. Cheguei em mim! E afinal, a felicidade existe. E sempre esteve cá.

2 de fev. de 2016

Oscilação

Vem assim, do nada, e me assombra. Um lampejo de consciência que desnuda o velho do novo, o ontem do agora. Sem qualquer comparação, apenas uma luz sobre as escolhas feitas, os caminhos tomados, os resultados obtidos.
Tornei-me quem eu era, sequestrei de mim quem eu havia sido. Eu não saberia escolher diferente, eu não saberia ter sido outra, ou ser agora. Tive a sorte da consciência presente enquanto houve o presente que foi vivido, penso ter a sorte de sabê-la (consciência) no presente de agora, com todas as incertezas que poderão vir do amanhã.
Estranho não sentir o aperto de saudade no peito quando penso na terra, no chão que pequena, jurei nunca deixar. Parece outra vida... O aperto que vem é da saudade de quem ficou, dos risos, dos abraços, dos colos e dos momentos partilhados, da família que anda comigo mesmo quando ando sozinha. Tão longe...
Não sei quem me tornei, sei apenas que me fiz. Não sei até onde a transformação que sofro será ainda transformada, custou-me chegar à suficiência e custa-me ainda mais que assim não seja. São nos sonhos que permito perder-me, tirar os pés do chão, voar... e voo alto, voo longe, perco de vista qualquer sinal de terra, mas de olhos fechados. Com os olhos abertos, preciso ver e busco enxergar até o se faz invisível.

Antes, fui feita de sonhos. Hoje, sou só feita de mim.

9 de dez. de 2015

É por mim

Já aceitei por aceitar, já abdiquei por abdicar. Conheço do fundo e até pelo avesso as consequências do "afinal, tudo bem, pode ser, tanto faz".
Mas dessa vez é por mim - Não é para o melhor para alguém, não é pelo que acredito ser mais justo ou mais certo para alguém - é por mim.
Já fui enfrente porque era o que alguém queria.
Já deixei para trás porque era o que alguém precisava.
Não vou dizer que sim apenas porque não custa muito, não vou dizer que não apenas porque sou capaz de negar.
Não perder tempo (ou espaço, ou vida) porque consigo ou aceito perder... Não é pelo que quero, é pelo que preciso. Que mereço.
Que seja difícil, será uma dificuldade por mim. Qual dificuldade valeria mais à pena enfrentar?
Não me lembro de ter sentido tão intensa essa sensação... É por mim! Pura e simplesmente, por mim.

Envelope Fechado

Sinto, guardo em mim. Escrevo, fecho em envelope. E tenho um ritual próprio onde ficam guardadas as palavras e os sentimentos, para que a vida (vida?) siga adiante.
Vez ou outra fico na dúvida se a vida é o que faço ou se está justamente no que guardo...

3 de dez. de 2015

Ponto

Há um ponto, sempre há...
Um ponto sem retorno, uma escolha sem volta, uma curva pra fora da estrada que se estava a seguir.
Às vezes antecipa-se, enxerga-se, há uma espécie de aviso ou sentimento de que o tal ponto se aproxima, mas não se sabe a hora, o quando, o como, ou o instante exato em que algo se rompe, se modifica, se perde.
Estar atento aos sinais e aos sentidos nos permite perceber a aproximação, mas a exatidao não existe...
Então de repente vem. E é forte, duro, por mais que se adivinhasse, é abrupto ao chegar - e avassalador. Vem duro e pesado de certezas, de absolutos, de incontestáveis afirmações e conclusões. Um ponto irremediável, ainda que se queira e se tente remediar... já não restam mais muitas voltas à dar, se é que resta alguma.
É o problema das certezas quando elas chegam... o problema do limite quando finalmente se ultrapassa, do volume quando de repente transborda.
O lamento pelo ponto ter sido alcançado existe, mas não anula (nem atenua) o facto em si.
É como algo que ao invés de se partir, arrebenta.
Penso que não são assim tão inúmeras essas experiências na vida, algumas com maior ou menor intensidade, algumas vírgulas ou reticências, mas os pontos estes são mais escassos, mais brutos, mais... definitivos. E duros.
Não gosto muito dos pontos porque são arrogantes em suas certezas, ásperos em suas pretensões de sabedoria... mas à mim, ainda assim, quando chegam são impossíveis de conter. Uma espécie de "basta" interior, uma espécie de preservação daquilo de que se acredita merecedor - ser ou não já é outra questão.
Os pontos quando me chegam são teimosos, obstinados, mas tenho dúvidas se chegam à ser injustos ou descabidos, uma vez que ultrapassam algum limite interior nem sempre possível de se controlar ou ajustar. Quem sabe, um reconhecimento da própria limitação, fragilidade ou incapacidade - no fundo, não importa... é um limite, seja descabido ou não.
Quando (e sempre) que me deparo com um ponto, me deparo com uma parede. Um muro, uma fortaleza. Algo intransponível, e que talvez lá esteja por alguma razão. Seja auto-preservacao, auto-defesa ou apenas escudo, não importa. Paredes não são construídas ao acaso, fortalezas não se erguem sem motivo, escudos não se usam por conforto.

28 de set. de 2015

Escrever

Escrevo... Não sei por quê.
Não há um objetivo, além do de saciar a necessidade que grita.
Não há uma razão. Não havia.
Até que houvesse um início, anos atrás. Sem pretensão, sem grandes pensamentos. E depois o sonho, o desejo de continuar o que se tinha interrompido. Eram personagens a gritar.
Gritaram alto, tão alto, que me calaram a voz.
Tomaram formas inesperadas, surpreenderam-me nas atitudes e escolhas, na autonomia que adquiriram.
Eu decidia e criava-lhes um caminho, mas tomavam outro... Desafiaram-me, rebelaram-se, desobedeceram aos planos que lhes tinha feito. E talvez sejam mais felizes assim, independentes de mim e da minha vontade.
Descobri um universo desconhecido. O universo deles. Não tenho direito à voz ou opinião, eles decidem sozinhos. Apaixonei-me. Zanguei-me. Tentei matar um e depois o outro. Acabei por não matar ninguém... ressussitaram das próprias cinzas, tornaram-se maiores, muito maiores do que eu.
Começam a surgir desfechos, escolhas, decisões - onde não tenho qualquer participação, apenas relato.
Eu, que pensei escrever, não crio... relato às histórias que eles contam-me ao pé do ouvido. Se passaram 252 páginas... em letra pequena, espaçamento simples. Algumas mais ainda hão de vir.
Tornei-me expectadora da história que criei.

12 de jul. de 2015

Grito

Então grito. Porquê me vi a viver o que não queria. Porquê me vi a ser quem não era.
Quando se pensa em fugir de casa, quando se pensa em romper amarras invisíveis (será que existem quando não se vê?), é hora do grito.
O grito que liberta o ser já livre, que lava o corpo já limpo, que deita abaixo (e fora) tudo que não faz parte da essência do ser - e é portanto irrelevante (ou deveria ser).
E por quantas vezes evita-se ou cala-se o grito sufocado na garganta?
Por quantas vezes contenta-se com a água morna, quando o que faz falta é a água gélida ou a ferver?
O medo - esse eterno vilão desde sempre - sussurra o calar dos gritos, abafa seus sons murmurados e faz sombra às luzes que tanto se esforçam por brotar.
Medo de tantas coisas que nos assombram...
Pode ser o medo de se voltar "à estaca zero" (quando isso seria o retorno ao básico e o basico é o essencial - não?), o medo do que se desconhece (há outra forma de conhecer que não seja "conhecendo"?), medo do inseguro (o que é seguro?)...
Sei muito pouco. Não sei nada. Mas consigo (sei) gritar.

3 de jul. de 2015

Sensações

As vezes acontece. Sensações, sentimentos. Sentir a falta dos amigos que afastei, e mais ainda dos que não fiz.
Estar como agora (e tantas vezes) a escrever e a sentir, sentindo que seria bom sentir um olhar pousado em mim de compreensão ou empatia.
Possuo não sei desde quando, nem desde onde, esse mundo que às vezes salta de dentro de mim por sobre mim, e me toma por entre pensamentos e silêncios de tudo que é, ou foi, ou vai ser, ou poderia ter sido ou vir a ser.
E sinto o vento no rosto enquanto vou escrevendo, vejo as velas dos barcos a balançar no mar e um ou outro passarinho que quase pousa a minha frente e faço parte de tudo, do todo, mas de uma forma particular. Íntima.
E às vezes esse mundo pede pra ser visto, pede pra ser dividido, mas existe só aqui dentro... como dividir?
Se não for através de um mudo entendimento, de uma silenciosa compreensão que suporte todas as mais variáveis e possíveis interpretações, ilusões e encantamentos, como dividir?
Tão mais fácil o distanciamento das ilusões...
Tão mais frágil a certeza absoluta, o conhecimento que não possibilita as interpretações... Os fatos e as certezas. Que são muito mais úteis, mais sábios, mais maduros. Mas melhores?
É sem dúvida um mundo lindo. Este e todos os mundos. Mas às vezes, um tanto carente das cores das ilusões.

1 de mai. de 2015

Um . Uma ,

Assim, simples. Um . uma , E não é preciso muito mais, neste intervalo está tudo dito.
Como sempre. Pois é mesmo assim, na pontuação, nos intervalos, respiros e silêncios é onde mais eu digo, onde está tudo que quero dizer.

E como sempre, omito destinatário, na minha omissão pensada, temeroza, relutante e que briga comigo a tempo inteiro. É mais fácil assim... na penumbra dos meus receios.

Ai, que são tantos, como sempre foram. Como sempre fui. Mas a gente cresce, transcende, amadurece, esconde... e sobrevive. Se fortalece ou se endurece? Amadurece ou se esquece?
Não sei... mas vai-se em frente. Vive-se, faz-se, cria-se. E se envelhece.

Mas eu guardo um segredo, o meu segredo. São os " . " e são as " , " onde me escondo, onde só eu sei e só eu conheço. O que guardo pra mim e que se alguém tentar traduzir, enlouquece.

Na pontuação está o segredo, a alma, a verdade. A lembrança, a certeza.

E é aí que sou mais tola e mais ingénua, pois não escondo e só me guardo, deixando tanto espaço pra ser retirada á força do esconderijo onde quis pensar, eu estava guardada.

E um livro, que poderia ser um livro qualquer (mas não é), me abana, me sacode e me atira pra longe, me deixa com as pernas pro ar e um olhar muito espantado a encarar todos os meus pontos finais e minhas vírgulas, aonde as coloquei de onde já nao mais os consigo tirar. Os pontos, ora... pra já até que concordo com eles, foram mesmo bem colocados e eram o que são. Já as virgulas.... valha-me Deus... deveriam ter sido . enquanto eu ainda era capaz?

Fui eu alguma vez capaz de faze-las pontos finais?

Não... quando muito, transformei-as em três pontos, guardando a expectativa e a esperança, quando eu esperava era pela exclamação!

Que não veio... virá?

A dúvida que pouco a pouco o tempo faz certeza. Certeza de que não. Passou.

Fica então um espaço meio esquisito, como uma página em branco onde paira apenas uma virgula... cheia de sonhos e promessas, de ilusões e de verdades que ficam então assim, a pairar no ar, na penumbra onde a escondo e às vezes a visito, só para me lembrar...

São os meus segredos, os meus esconderijos, meus sopros de amor que já não ouso sonhar.

8 de abr. de 2015

Resistência

Talvez um dos maiores obstáculos pessoais à enfrentar seja a resistência. Ao menos para mim, de certeza é um dos mais difíceis. Relaciona-se tanto ao apego quanto ao desejo e ao ego. Relaciona-se também com as expectativas e ilusões que muitas vezes inadvertidamente, criamos em nós mesmos.
Não é tarefa fácil reconhecermos quando é chegado o limite entre a força e a digamos, estupidez.
Se sopra um vento de mudança, se a vida mostra outros caminhos ou se percebemos que estamos demasiado tempo a bater em uma porta que não dá sinais de abrir, a sabedoria dita que é hora de deixar fluir, de nos libertarmos do passado (ou presente) que nos segura estacionados e seguirmos adiante – evoluirmos, crescermos, aprendermos. Mas ai, ai que não é sempre das tarefas mais fáceis.
Prezamos por demais nossa zona de conforto, os riscos mesmo dentro daquilo que conhecemos já são tantos, imagine para além da linha conhecida... Para além disso, há também o medo – e a dor.
O medo do que está por vir, do que o futuro nos trará e que nos é totalmente desconhecido ainda mais se iniciamos trilhas ainda não mapeadas por nós.
E a dor. A dor do processo de desapegar, de deixar ir, de dizer adeus ao que conhecíamos e que nos trazia alguma sensação de segurança – (de ilusão) de controle.
E quando nos vencemos a nós mesmos e iniciamos a navegação por águas desconhecidas, não significa que chegaremos seguros ao outro lado. Nem implica que não haverão mais e outros mares e oceanos a desbravar. Não mesmo – e até o contrário disso. Quanto mais descobrimos, quanto mais mares navegamos, mais descobrimos que nos falta navegar.
O instante de parar as descobertas é uma escolha (como tudo). Mas parar muitas vezes significa... resistir. Resistir ao novo, resistir à descoberta, resistir à evolução e ao aprendizado. E não é justamente o aprendizado que nos dá a emoção da vida? Da verdadeira vida?
Estar vivo (verdadeiramente vivo) não me parece que seja estacionar. Nem criar raízes tão fundas que nos impeça o movimento, nem mesmo levantar paredes (seguras) tão altas e sólidas que acabam por nos impedir de olhar tudo que há (e vive, e pulsa) através delas.
Mas não é fácil. Deixar a vida fluir, deixar soprar os ventos de mudança e dançar ao sabor da brisa que chega (seja ela qual for) custa muito. Custa o risco do vento nos carregar para outro lugar qualquer, tirando nossos pés do chão e levando-nos (quem sabe) até para o outro lado do mundo. Há que se desapegar do chão onde estão nossos pés. Há que se desprender do que se sabe, do que se espera, talvez até do que se tem.

Resistir diante de uma realidade distinta custa. Deixar fluir a nova realidade custa também. No fundo, a escolha se deve as prioridades que se tem. Se é manter-se na zona de conforto (até que o vento se torne tão forte que nos arremete ao longe talvez em pedaços) ou se é deixar fluir a própria energia da descoberta e aprendizado – do mundo e de nós mesmos. 

27 de jul. de 2014

Cardume

Era um lindo cardume, um prateado, unido e veloz conjunto de peixes. Nadavam e rodopiavam brincando uns com os outros enquanto assim aprendiam técnicas de defesa e fuga.

Porém, um dia nasceu um peixe diferente. Era prateado como os outros, mas era frágil.

Extremamente frágil, não tão ágil quanto os outros, nem tinha as nadadeiras fortes e sadias como tinham os outros. Dizem que quando algum sentido falha, outros se desenvolvem mais para “equilibrar” o todo.

Assim foi, que o frágil peixinho aproveitou-se de sua fragilidade para desenvolver ainda mais sua sensibilidade. Era sua arma secreta, poderosa – enxergar e compreender os corações dos outros peixes. Essa era sua força maior.

Mas imagine só, o que era para um peixinho assim o sentido do cardume. Cada outro peixe era como se fosse ele próprio, talvez até mais do que ele mesmo deveria ser. Cada dificuldade que o cardume enfrentava, era como se fosse uma questão de honra, dever e missão para o peixinho que todos saíssem da crise intactos, sem arranhões, machucados e mesmo sem nenhuma tristeza.

Pobre peixinho! Que assumiu pra si uma missão impossível... a de prevenir e remediar as dores e dificuldades do mundo para seu cardume.

Quando ria, o peixinho sentia de tal forma a intensidade de sua alegria que causava câimbras em sua boca e lagriminhas em seus olhos já molhados pelo oceano. Mas quando sentia que algum peixe do seu cardume tinha dificuldades ou problemas, transtornava-se de tal forma que pegava para si as dores do outro e as sentia tão ou mais intensamente que o próprio peixe dono daquela dor.

De alguma forma, o peixinho acreditava que o cardume vivia sob a luz e proteção do Sol, que era como se vivessem em uma bolha dentro do mar. Tudo era e deveria ser sempe perfeito, intocável, mágico.

Pouco a pouco o tempo foi passando, e o peixinho foi se dando conta de que existiam perigos no fundo do mar... rochas, sombras, predadores... Percebeu que até em seu próprio cardume haviam problemas, que nem todos os peixes conseguiam compreender uns aos outros, que nem sempre respeitavam-se ou protegiam-se como tentava fazer o pequeno peixe.

Começou a fazer passeios sozinho, nadava até onde conseguiam ir as suas fracas nadadeiras.

Para alcançar distâncias cada vez maiores, impunha-se tamanha determinação que suas nadadeiras muitas vezes doíam e sangravam, deixando o peixinho com cicatrizes permanentes. Ele queria ser forte, menos frágil... mas não conseguia, por mais que nadasse, retroceder o desenvolvimento da sua sensibilidade, nem mesmo sufocá-la com as marcas das suas cicatrizes.

Em seus passeios, o peixinho encontrou-se com muitos outros peixinhos de cardumes diferentes, até com outras espécies que nunca tinha visto antes e que sabia, nada tinham de parecido com peixes. Descobriu que mesmo em outros cardumes, era sempre a mesma coisa. Haviam dificuldades, dores, tristezas... descobriu que não havia, por nenhum lugar dos que percorreu, nenhuma bolha de proteção e nem Sol que brilhasse dentro da água, só alguns reflexos que morriam pouco depois de brilharem na superfície do mar. O Sol não era para aquele universo líquido.

Nadando, se aventurando e descobrindo a si mesmo e aos outros, o peixinho deu-se conta de que por mais doloroso que fosse, sempre há uma espécie de equilíbrio interno, de capacidades e limites. Cada ser carregava talentos e fraquezas e não era possível ser possuidor de todos os talentos sem nenhuma fraqueza.

A força, o talento e a fraqueza do peixinho eram uma coisa só – o sentir. Precisava aprender a compreender melhor essa sua capacidade, para aprender a não morrer quando sentisse a perda e a morte, para não se torturar quando se sentisse traído, para não se abandonar quando se sentisse abandonado. O peixinho precisava aprender...

Dentro de si, o peixinho sabia... Precisava deixar, para suportar ser deixado. Precisava perder, para aprender a ter perdido. Não haveria outra forma de suportar os sentimentos que haviam no seu cardume, no seu oceano, no seu mundo e dentro dele mesmo.


Quando voltou ao seu cardume depois de mais um passeio, suas nadadeiras estavam ainda cheias de cicatrizes, mas mais fortes. Ele mesmo continuava frágil, mas mais preparado. E quando aconteciam as crises, doíam nele com a mesma intensidade, mas ele havia aprendido a suportá-las.

10 de jul. de 2014

Asas

Os pensamentos corriam acelerados, confusos, exponenciais dentro da mente. Enquanto imagens ocorriam-lhe ao pensamento, paisagens passavam por baixo de seus pequenos olhos de passarinho em alta velocidade.

Na cabeça, a imagens dos pais, dos avós, das cenas de infância, dos risos e das lágrimas. As paisagens passavam por baixo dele, e os seus olhos olhavam em todas as direções e nada enxergavam, eram pensamentos e lembranças demais...

Cada momento vivido passava em sua pequena cabecinha assustada, todos os sentimentos vividos em uma recordação alucinante. As brincadeiras no colégio, os passeios na fazenda, as histórias antes de dormir, as refeições e as conversas, os abraços e as saudades... tudo de uma única vez, lembranças de todos aqueles que haviam construído seu caminho e compartilhado dele por tanto tempo. Eram lembranças demais, pulsos demais.

O passarinho voava assustado, confuso, perdido... Num ato desesperado em conter o voo tão acelerado e perdido que poderia acabar por matá-lo, nem esforço consciente tremendo, forçou-se a abrir os olhos. E abriu-os.


Viu ao mesmo tempo em que as paisagens passavam por baixo dele, passarem em sua mente todas as lembranças de sua pequena vida. Sentiu-se saudoso, agradecido, contente... então, com esses olhos gratos e cheios de saudades, percebeu-se das paisagens que estavam a passar por baixo dele... ele estava a voar! Sim!!! Não tinha se dado conta! Estava a voar mesmo, em pleno mundo a céu aberto!

Pensava tanto em tudo que havia passado, que esqueceu-se daquele desejo inocente, poderoso, absoluto que havia nascido um dia em seu coração... aquele velho companheiro, aquele antigo desejo de liberdade... 

Ele havia desejado, ele havia conquistado! Sim... todos os desejos, por mais pequenininhos que pareçam, por mais frágeis e singelos que sejam, todos os desejos que nascem no coração são únicos, possíveis, reais... Ele havia depois de ter-se esquecido do que estava a fazer, conquistado seu próprio voo.