4 de jul. de 2024

Famílias

Tenho sempre latente em um recanto mental qualquer, a pergunta constante do porquê, a necessidade de perceber tudo, do que quero, faço, sinto, espero.

Não é por querer, nem é através de nenhum esforço - só está lá, sempre. Isso faz-me ir (ou tentar ir) sempre um pouco mais fundo, um pouco mais longe, um pouco mais depressa, um pouco mais alto. Em tudo, sempre.

Anos atrás, dei à isso o nome de Desassossego. O meu. A minha consciência e o meu desassossego. Um não existe sem o outro - embora existam lampejos de consciência sossegada, mas são muito raros.

Talvez por isso, tenho me percebido a pensar que posso estar a procura de uma vida que passou há muito, muito, muito tempo... 

Uma vida em que a casa era cheia, a porta nunca estava trancada e estávamos todos juntos no mesmo barco, éramos uma família.

Talvez eu ande à procura daquela segurança, daquela certeza absoluta de que não importava o que pudesse acontecer, como ou à quem, estaríamos sempre todos juntos e seríamos sempre uns pelos outros. Aliás, não é que não importava o que pudesse acontecer - nada que pudesse acontecer mudaria a vida que era aquela.

Mas mudou.

Mudou e me partiu por dentro. Irremediavelmente.

Sem dramas e sem culpados, sem disfarces nem panos quentes, sem ilusões e sem rodeios, foi simplesmente assim.

E da melhor forma que eu pude e que eu sabia, tentei juntar e recolher pedaços, tomei as melhores decisões que pude, pensando que eu estava apenas a seguir o fluxo que era natural das coisas. Mas não era. O meu fluxo natural eu ainda ia precisar cavar muito e muito profundamente para encontrar.

Recolhi os pedaços acreditando sinceramente, que eu estava a fazer o certo, o melhor. Hoje, vejo de forma diferente e penso que se voltasse atrás, eu escolheria de outra forma. Quase de certeza que sim.

Um dos problemas da consciência é que ela possui um tempo próprio, e nos esclarece muitas vezes só muito tempo depois.

Ter-me confrontado com algumas verdades da vida me destroçou. Não encontro palavra melhor.

Tanto, e de tal maneira, que precisei dizer-me e mostrar-me que nada era certo, que nada era permanente, que nada era certo e nem seguro, que nada existiria para sempre - e que mais valia ser eu a definir o tempo das coisas que deixar a vida decidir por mim e me pegar desprevenida. E esta, sou eu.

Como quando sinto-me ameaçada, o impulso feroz de reagir e chegar-me à frente, logo vejo depois se era uma pedra ou um dragão, e quais pedaços de mim perco ou salvo.

Busquei desculpas e justificações, busquei ilusões e sonhos - qualquer coisa capaz de me dar a força e a coragem para ser eu a definir o tempo das coisas e não esperar que acabassem 'de surpresa'.

E fui embora. Dos pedaços que tentei recolher quando já não éramos mais todos, e já não havia mais barco, catei-os, juntei-os, abracei-os, e despedi-me deles.

De forma feroz, decidida e obstinada. De forma resoluta. E fui embora.

Levei tempo até sentir-me capaz de fazer amigos, de abrir a porta, de conhecer pessoas. Se existe solidão, foi aquela. E foi boa, foi constante, foi companheira. Foi necessária.

Eu estava tão perdida, que qualquer lugar servia, qualquer circunstância cabia, qualquer possibilidade era possível. Eu cresci, eu cavei-me e eu descobri-me.

Chamo àquele tempo de Lisboa. Minha Lisboa. Ninguém a viu ou sentiu com os mesmos olhos e sentidos que eu. Eu só tinha ela.

Depois, mais um engano. Uma tentativa frustrada de resolver o insolúvel, de tapar o sol com a peneira, de "fechar" os assuntos. Brasil. Por pouco tempo, mas Brasil. Pouco menos de um ano acho, mas o suficiente para me perceber a morrer. Eu já não cabia ali. Eu já não estava ali. Eu já não era mais aquele eu.

E então... Silves. Sonho. Que palavra descreve melhor? Sonho. Foi isso que foi. E foi bom, foi bonito, foi gostoso de sonhar. Mas é tudo e é só o que foi: sonho.

De Silves, Albufeira. Pela primeira vez, com meus próprios pés nos sentidos todos. Emocional, mental, social, financeiro, qual seja. Meus pés e mais nada. Nenhum lugar conhecido ou com conhecidos, sem certezas e sem recursos, Albufeira. E alí, morri e renasci.

Uma casinha qualquer, um trabalho qualquer. 12, 14 horas sob o sol. De pé. Parada. Sobreviví.

E pela primeira vez, uma porta se abriu. Não, não foi uma porta - foi uma janelinha. Da cozinha. E pela primeira vez, meus olhos mergulharam no mais azul dos mares e busquei um porto, um abrigo, uma casinha. Minha casinha. Que você foi, por tantos anos. Não sei se alguma vez te agradeci... Obrigada.

Mas... as casinhas perdem seus tetos nos grandes vendavais, e nós nos perdemos. Éramos incríveis... e nos perdemos. Eu sinto muito, de verdade... Desculpe.

Depois... fui eu. Eu e eu. E pedaços... pedacinhos de tudo, de todos. E eu. E uma solidão diferente... calma, contida, 'sociável' e produtiva na sociedade. Mas, solidão. Sempre disfarcei bem, acho.

Espanha. Risos soltos e gargalhadas. Caos. Conflito. Mágoa.

Portimão. O agora. A porta entreaberta, os pés meio firmes, meio duvidosos. Mas a porta entreaberta. E espreitas. E estás aqui. E meu Desassossego acorda, pergunta-me: porquê?

Desassossego. E consciência...

Talvez por isso, tenho me percebido a pensar que posso estar a procura de uma vida que passou há muito, muito, muito tempo...

 Uma vida em que a casa era cheia, a porta nunca estava trancada e estávamos todos juntos no mesmo barco, éramos uma família.








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