Era uma velha, muito, muito velha.
Tinha os sonhos todos enrugados, tinha as motivações
flácidas e os desejos sem qualquer força de movimento ou vitalidade, tinha a
pele em casca, e o coração em pedra. De tão velha, quase que deixava de ser
presença para ser apenas uma sombra.
Movia-se entre os dias com a teimosia dos velhos, embora
tivesse a sabedoria dos velhos endurecida e também envelhecida.
Olhava à sua volta com olhar observador, única parte em si
que ainda emitia algum brilho, ainda que longínquo.
Vivia com gosto porém sem vontade, e quando apareceu um menino
nos dias dela, foi sem relutância que o deixou aparecer, como era sem
relutância que passava de um para outro dia.
Pouco a pouco começou a surpreender-se com o menino, como
ele conseguia dia após dia parecer ainda mais menino e mais criança, mesmo
sendo de certa forma, mais velho que ela. Olhava-se as vezes no fim do dia ao
espelho, e passava cada vez mais tempo a observar os sonhos enrugados, as
motivações flácidas e sem vida, os desejos enrijecidos.
Os dias corriam, e cada vez mais a velha passava mais tempo
a observar-se ao espelho, ganhando estranheza cada vez maior ao olhar suas
marcas de velhice.
Quando num momento inesperado o menino pegou em sua mão, a
casca que ali havia na pele da velha rachou, provocando nela um choque de
surpresa e dor. Deixou de sentir a mão do menino, e ficou parada a observar sua
própria mão, endurecida, enrugada, crespa e cascuda com uma pequena rachadura a
percorrer-lhe a palma até os dedos.
Olhou para o menino e viu que este lhe sorria.
Ela tentou sorrir-lhe de volta, e a boca enrugada de lábios
finos e dentes gastos, rasgou-se num sorriso, fazendo uma nova rachadura, agora
em seu rosto.
O menino estendeu suas mãos sempre a olhar para ela, e reteve
nas tuas, as mãos endurecidas dela.
Quando os dedos da velha se moveram para entrelaçar os dedos
do menino, novas rachaduras surgiram, fazendo a pele enrugada rachar ainda
mais. Quase que se podia ver cor através das rachaduras que iam se abrindo.
O menino sorrindo-lhe e sem dizer palavra, transformava-se
aos olhos da velha num menino cada vez mais novo, numa criança cada vez mais
pequenina e ia sorrindo-lhe mais à medida que se ia aproximando.
A pele dele era como a pele de um bebê, e a maciez tão
grande sob a casca tão dura da velha era como ácido a derreter e despedaçar a
casca que ali havia.
Então o menino a abraçou forte e apertado. Não disse palavra
alguma, não pediu licença, não demonstrou medo nem insegurança, apenas
demonstrava que precisava daquele abraço. A velha tentou retribuir o abraço, e
fez um esforço enorme para mover os braços endurecidos e velhos e colocá-los à
volta do menino.
Naquele abraço silencioso e duradouro, o calor fez derreter
cada pequenina ruga da velha, cada músculo de sonho flácido voltando a ganhar
tenacidade, e a velha conseguiu sorrir sem a casca que lhe cobria o rosto.
Depois
de instantes, olhou para o chão, para a sombra dos dois, e só o que viu foi a
sombra de duas crianças a brincar.
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