Caminhantes – O Teatro
A Subida na Serra
- Estás preparado Filipe ? –
pergunta-lhe Tó, pondo-lhe a mão no ombro – Tens a certeza que me queres
acompanhar ?
Ele não lhe responde, mas acena
afirmativamente com a cabeça.
O frio estava rigoroso. Nunca faz calor
durante o inverno na serra, mas todos estavam habituados a estar ali e sempre
iam preparados para o frio, fazendo-se acompanhar de roupa adequada para que
pudessem ficar muito tempo sem se incomodarem com o avançar da noite.
Mas esta noite tremiam de frio mesmo
com toda a roupa que vestiam. Caía uma chuva miudinha, persistente,
gelada.
Sem vento e sem lua, tudo o que
acontecia eram gotas de água que caíam dos ramos das árvores.
O vazio, o escuro, o silêncio.
Tó sorriu.
- Hoje vai ser uma noite especial para
vocês – disse Tó para o grupo.
De meia idade, bastante magro, Tó tinha
o cabelo e os olhos muito pretos. Usava um bigode com alguns pelos brancos a
tatuarem a idade que já carregava.
Os olhos de um aspecto antigo, sábio, brilhavam.
Era um homem respeitado, educado, e todos lhe reconheciam um mistério no
sorriso. Ou alguns achavam-no um homem esquisito e guardavam-lhe distância.
Mas todo o conjunto fazia dele um
exemplo a seguir, dentro daqueles que procuram respostas nos mais ínfimos
detalhes da Natureza.
Era por isso que ali estavam.
Alexandra, Rui e Susana juntaram-se num
abraço enquanto Filipe e Tó iniciavam a escalada.
- Da próxima vez, quero ir eu – disse
Alexandra a Tó.
Com aquele sorriso, Tó voltou atrás e
beijou-a na face.
- Encontramo-nos lá em cima –
respondeu-lhe.
Enquanto eles se dirigiam para a base
da escarpa, os restantes seguiram pelo caminho de terra batida.
Alexandra demonstrava a sua
preocupação. Era namorada e vivia com Filipe, e há muito que ele se mostrava
ansioso por fazer a sua iniciação.
Mas numa noite como aquela, Alexandra
achava que era demasiado perigoso.
- Não se preocupem que eles ficam bem –
disse Rui para as raparigas. – Vamos concentrar-nos na subida, estamos gelados,
e se não levarmos um ritmo certo, vai ser difícil chegar lá acima.
- Assim seja! – diz-lhe Susana,
agarrando a mão de Alexandra, sua amiga inseparável.
Alexandra, de cabelos loiros e grandes
pestanas, de pele muito branca, escondia-se debaixo do gorro do seu casaco
impermeável e apertava o seu cachecol .
O seu instinto apertava-lhe o peito,
não conseguia entender a razão, mas nunca duvidara da sua capacidade interior
de prever acontecimentos, fossem físicos ou espirituais.
De todos, Alexandra era quem mais
sentia aquele lugar, embora com arrepios. Havia sido conduzida lá, havia muitos
anos, por Tó. Fora ele quem lhe apresentou o sítio com que ela há muito
tempo sonhava. Sabia por isso que Filipe estava bem acompanhado, e que
não correriam riscos desnecessários, mas sentia que algo importante, e talvez
fora de controlo poderia acontecer. Mas não partilhou esta sensação com
ninguém, e acompanhava os passos dos seus companheiros.
Com uma pequena lanterna de Leds a
ajudá-los a desviarem-se dos buracos e pedras no meio do caminho subiam para o
topo da serra.
Rui era o mais novo de todos. Com um
porte atlético e um cabelo sempre muito bem arrumado, assumia-se como um guia
naquele momento.
Gostava de liderar, e de certa maneira,
sabia como faze-lo.
Era um homem com convicções quase
neutras, entre o lado do Bem e o conhecimento do Mal. Balançava constantemente
entre o contacto com estes dois lados, mas tinha no seu coração a bondade, o
que fazia dele um homem sempre acarinhado.
- Tenho aqui na mochila uma garrafa de
água, alguém quer? – perguntou entre passos, ao mesmo tempo em que coloca o seu
braço para trás alcançando a pequena garrafa .
- Está tão fria, como se tirada do
frigorífico! - disse, bebendo apenas um gole.
O caminho que tomavam ficou em certo
ponto intrasponível. O temporal dos últimos dias partiu várias árvores, e
estando uma caída no meio do caminho, tiveram que parar para estudar opções.
- Não temos como passar, pessoal... –
Disse Susana enquanto tentava encontrar um caminho, ladeando a árvore. –
Há muitos ramos aqui, e sem ver o que está por baixo deles podemos magoar-nos –
disse.
- Cerca de 50m atrás, passamos por um
desvio que apesar de ser pelo meio da floresta e não ter caminho aberto, tem
saída um pouco mais à frente de onde estamos! Temos lanterna, temos pilhas, e
não estamos sozinhos, podemos arriscar.
- Não sei se me agrada muito desviar o
caminho, Rui – interrompeu Alexandra. – A minha vontade de ir é muito grande,
mas alguma coisa me prende, e talvez esta árvore tombada seja um sinal disso.
- Sinal de quê Alexandra? De ficarmos
lá em baixo e termos que esperar horas até que eles regressem? – Respondeu Rui,
olhando-a fixamente. – Lá em cima temos abrigo, vamos, venham atrás de mim.
Susana e Alexandra não o acompanharam
de imediato. Susana estava muito habituada a seguir os conselhos que Alexandra
oferecia, estavam as duas imensamente ligadas, num tipo de relação que se uma
chorasse, a outra, mesmo a quilômetros de distância lhe ligava a perguntar
porque chorava. Acreditavam numa irmandade das suas almas. Mesmo que separadas,
sentiam-se sempre muito próximas.
E de facto assim pareciam ser.
Até aquela noite.
- Quantas vezes já subiste por aqui Tó?
– Pergunta Filipe, olhando para cima, não vendo mais do que rochas escuras.
- Mais vezes do que posso contar –
respondeu-lhe. – Não receies cair, pois se começares o teu caminho no medo de
não alcançares o destino, então muito provavelmente não aprenderás nada com ele
ou podes até nem conseguir fazê-lo. Assim, talvez não chegues onde queres.
Filipe seguia Tó, com atenção às suas
passadas e palavras em silêncio.
A chuva, que antes não incomodava,
começava agora a cair com mais intensidade, e a força da água a cair não o
estava a tranquilizar. A força da chuva veio acompanhada por um
nevoeiro que de tão espesso se tornava pesado.
- Agora sim – disse Tó, enquanto retira
do bolso de dentro do seu casaco o seu maço de cigarros e dele retira um –
Sintra está como sempre deverá estar para aqueles que a sentem : “Mergulhada
numa bruma que não se dissipa”.
Depois de várias tentativas acende o
cigarro, e dá vários bafos seguidos antes deste ficar completamente molhado.
Olha para Filipe, depois para o
cigarro, e erguendo os seus olhos para cima, diz acompanhado de uma gargalhada:
- O único vício que me permitiram ter.
– Nesse instante, o cigarro apagado pela chuva é guardado num saco de plástico
que Tó guardava no bolso. Nunca, em ocasião alguma deitava lixo para o chão.
- Está na hora de continuar. – Com um
gesto carinhoso, aproximou Filipe de si, e amparando-o com um leve abraço
diz-lhe que têm que continuar.
Ainda não tinham começado a escalada
realmente, mas o terreno já era com subida acentuada e não facilitava não terem
qualquer luz para os guiar.
- Sabes Filipe – percebendo como ele já
se encontrava apreensivo – muitas vezes me disseste o quanto gostarias de finalmente
viveres uma experiência tua, somente tua aqui em Sintra. E aqui está. O teu
dia. A tua noite. E não serás só tu. Individualmente, cada um e ao seu jeito,
viverá algo hoje que mudará para sempre as vossas vidas.
- Então porque me acompanhas só a mim?
- Porque de todos eles... tu és o
próximo.
- O próximo a quê? – respondeu Filipe.
- Mais logo verás. Faz tempo que me dás
todos os sinais necessários sobre tuas buscas interiores e algumas dores que
ainda carregas. Terás todas as respostas que precisas e que buscas na tua morte
simbólica.
Tó nunca fora um homem de muitas palavras,
e mesmo assim, cada frase proferida poderia ter vários sentidos, vários
significados. Todos poderiam ouvir dele aquilo que pretendiam ouvir, mesmo que
não fosse dito (como geralmente ocorre quando muitas vezes ouvimos apenas o quê
gostaríamos de ouvir, percebemos apenas o que gostaríamos de perceber, e
acreditamos no que nos é mais conveniente acreditar). Mesmo que o conteúdo do discurso
de Tó fosse disperso, havia sempre quem encontrasse nas suas palavras a
resposta para um determinado enigma pessoal.
Há muito tempo que ele se unira àquele
grupo, para os satisfazer das suas curiosidades acerca de Deuses e Deusas, para
lições de magia e aulas práticas de energias partilhadas ou qualquer outro
mistério que lhes despertasse interesse. Era de facto considerado por muitos como
um Mestre. Um humilde homem com capacidade de chegar fundo no pensamento
daqueles que o quisessem ouvir.
Tó aproximou-se de uma enorme formação
rochosa em forma de um coelho, que dissimulada pela vegetação, mesmo durante o
dia só está visível para os mais atentos aventureiros com coragem o bastante
para se embrenhar tão fundo na floresta.
Depois de alguns segundos, Filipe não
consegue conter o seu pensamento.
- Morte Simbólica?
- Não compliques esse pensamento. Não
te falo de uma morte concreta, não creio ser este o teu caminho. Tu sobrevives,
deves sobreviver. Melhor, tu reorganizas e reavalias a vida conforme a sentes e
de acordo com quem verdadeiramente és. Nunca deste conta, mas todos morremos
várias vezes ou deveríamos nos permitir morrer e continuamos depois a viver com
os significados que cada morte nos trouxe. Deixa... concentremo-nos agora.
Tó estava agora no topo da sua atenção
e com olhos postos no melhor caminho a seguir para a subida íngreme quase como
escalada.
- De agora em diante, tens de encarar
todos os teus passos como um íman que te atrai à Terra. Um passo em falso, e
tenho que te vir buscar cá abaixo.
CAPÍTULO 1
O Teatro