Que venha a vida. Que venha o pulsar do coração nas veias, o
arrepio nos poros, o sorrir na alma. Que venham as cores, que o vento sopre
para longe o que era cinza e faça com que brilhe o sol.
Que eu saiba, dentro de tudo aquilo que não sei, deixar
abertas as janelas e deixar que o calor me chegue à pele.
Descalçar os sapatos, despir os casacos, soltar os cabelos e
tirar dos dedos os anéis e do espírito as correntes.
Esquecer-me do relógio, do telemóvel, do computador e dos
afazeres que o mundo achou que deviam ser meus.
Ajoelhar-me na terra úmida e ouvir os pássaros que nunca
deixaram de cantar, mesmo quando eu não os ouvia. Curvar-me até ter a testa no
chão, afundar os dedos na terra como se para sorver toda a energia que me esqueci
de sentir.
Permitir que a brisa sobre mim seja um beijo, e que a
natureza seja o abraço que não senti. Esquecer-me de tudo que já não sou e
deixar-me ser quem me tornei.
Aceitar o que me chegar, deixar ir o que não veio. Não
lamentar pelo que não foi ou que não pôde ser.
Reconhecer que ninguém me rasgou o peito para além de mim
mesma, e o rasgo que fiz foi o que me permitiu brotar. Tornar-me a semente que
antes adormecia cá dentro, e elevar o broto que criei. Que se tornem folhas os
meus dedos e minhas mãos. Que se torne tronco e árvore o resto de mim.
Em pé, entre as amendoeiras e pinheiros que eu seja o vento
que me sopra, a luz entre o entardecer e o anoitecer que tinge com tons de rosa
e de azul a página em branco que ainda não escrevi.
Solto os restos que poderiam haver presos e contidos,
liberto a mente condicionada e limitada e
os pés descalços no chão já nada mais tocam. Misturo-me com a paisagem,
transformo-me no Universo em mim que sempre fui, mesmo quando eu ainda não sabia que era.